Naquele ano de 1982 plantei,
em frente à fachada principal da casa da chácara, duas belas mudas de pinheiro
de natal, a araucaria excelsa. Algum
tempo depois fotografei as crianças ao lado delas já enfeitadas nas festas
natalinas. Contei a elas que aquelas duas árvores iriam crescer muito..., mais
de 25 metros de altura, ficariam enormes e seriam vistas lá de longe, a uns quatro
quilômetros, na parte mais alta da estrada de chegada. As árvores ficariam
muito bonitas, como dois guardiões da nossa casa, como aqueles guardas da porta
do Palácio do Planalto que elas, as crianças, tanto gostavam de ver. Os
soldados do Batalhão de Guarda Presidencial pareciam duas estátuas, imóveis,
com enormes lanças na mão. As crianças ficaram admiradas, como a imaginar quão
alto aqueles pinheiros, tão pequeninos ficariam e pareciam mesmo não acreditar
no que eu dizia. E ainda completei a aula, durante o plantio: vocês, crianças,
também crescerão, terão filhos e eu serei vovô de cabelos brancos, velhinho. Também
os passarinhos virão fazer seus ninhos nos galhos, outros apenas repousariam e
cantariam em bela sinfonia de primavera. Outros, ainda, tentariam quebrar seus
frutos em forma de castanha. Doces devaneios para estimular os sonhos das
crianças que ali estavam ao redor, “ajudando” no plantio das duas belas
árvores.
Até os três ou quatro anos de idade daquelas árvores foi
possível enfeita-las com bolas de natal, ritual que se repetia com prazer e
sempre registrado em fotos. Depois não mais, em razão do enorme porte. Os
passarinhos vieram como previsto, sabiás, bem-te-vis, sanhaços, asa branca -
aquela enorme pomba selvagem, pardais, tico-ticos, tizius, canarinhos da terra
– também conhecidos por cabecinha-de-fogo e recentemente, pela primeira vez,
pasmem... um bando de tucanos do bico amarelo, também fotografados, para o
deleite de toda a família que, felizmente, estava presente, numa bela manhã de
sol e pode apreciar essa maravilha, tucanos do bico amarelo. Os primeiros
pássaros a fazerem ninhos nos pinheiros foram os bem-te-vis. Bem tecido e
ancorado, o ninho prestou-se várias vezes ao acasalamento e consequente revoada
de filhotes. Tempos depois, ninguém poderia imaginar que aqueles dois pequenos
passarinhos “entortaram” o tronco do pinheiro. Como? Ah... conte outra...,
disseram alguns incrédulos. Mas a verdade é que o tronco entortado ainda está
lá, de pé, mais de trinta anos depois. Mas, como pode um pequeno passarinho
entortar o tronco de uma enorme árvore como aquela? Simples, explicava eu aos
incrédulos. O ninho, bem volumoso e fortemente entrelaçado aos galhos,
encharcava-se com as chuvas e tornava-se excessivamente pesado, vergando o
tronco da jovem árvore. Tempos depois, ao olhar para cima notava-se, naquele
gigante de mais de vinte e cinco metros de altura, um desvio acentuado assemelhando-se
a um ligeiro “S”, logo acima da metade do grosso tronco. Os visitantes ficavam
intrigados, difícil acreditar que aquilo fora obra de um pequeno passarinho, o
bem- te vi.
Os mais assíduos nidificadores naqueles dois pinheiros
foram as pombas selvagens, conhecidas por asa branca ou ainda pomba trocal (um
pouco maior e mais graciosa que a juriti). Não raras vezes seus ovos caiam, pois
nunca vi ninho tão mal feito, pequeno e ralo. Tão ralo que se podiam ver os
ovos quando se olhava por baixo. O simples ato de sair do ninho, um pouco mais
apressada, já fazia com que os ovos ou mesmo os filhotinhos caíssem ao chão.
Tivemos algum trabalho em recolar esses filhotes. Certa feita, já grandinhos,
caídos, cuidamos deles. Ficaram domesticados e não saíam da cozinha, ou quando
muito davam uma volta, voavam até alguma árvore e voltavam para comer na mão e
até passeavam no ombro ou na cabeça do caseiro que foi o principal cuidador.
Certa vez meu irmão se deixou fotografar com elas se alimentando em suas mãos.
Pagou maior mico em praça, pois levei as fotos e as exibi aos seus amigos, inventando,
antes, que um “velho feiticeiro” passara em minha chácara e demonstrou seus
poderes de fazer com que aves selvagens o obedecessem, vindo se alimentar em
suas mãos e ainda conversar com ele. Contava a história, fazia mistério e em
seguida mostrava as fotos... gozação geral para cima do suposto “feiticeiro”.
A maior surpresa
foi mesmo a passagem do bando de seis tucanos do bico amarelo. Pousaram no
pinheiro, atacaram os frutos, grunhiram bastante (alguém conhece o canto dos
tucanos? Não é bonito, mais parece um grunhido) e depois de uns dois minutos
revoaram, não sem antes de serem registrados em fotos, ainda que com o celular
sem muito alcance. Visitantes menos desejados eram os gaviões carcarás, prontos
para atacar os filhotes de bem-te-vi e pomba trocal. Sempre atentos aos
escândalos das brigas entre predadores e ameaçados, cuidávamos de espantar os
intrusos rapineiros com simples assobios ou bate-palmas e assim salvar os
filhotes em seus ninhos.
O tempo passou e tudo aconteceu como previ para os
filhos. Eles cresceram, tiveram filhos que hoje já estão com seis e sete anos,
a alegria do vovô de cabelos encanecidos, mas com a alma jovem, a correr com
eles pelos quatro cantos da chácara, jogar bola, pescar, nadar, cavalgar,
soltar pipas ou ainda voar com aeromodelos de aviões e helicópteros. Por seu lado as árvores cresceram, antes
enfeitadas no natal, depois as sombras e principalmente a beleza natural,
avistada de longe como um marco do território. Abrigos e celeiros, para os passarinhos
que se alimentam de seus frutos silvestres, ninhos, brigas entre eles,
cantorias sem fim, muitos filhotes. Dois desses filhotes resolveram transitar e
voar pela cozinha e varanda, passear de carona no ombro ou na cabeça das
pessoas.... Maravilhas da natureza que nos levam a desejar sempre estar ali,
embora só usufruíssemos desse paraíso nos finais de semana.
Mas, a mesma natureza que nos proporcionou
tudo isso, também nos tomou de assalto uma daquelas belas árvores. Um raio fulminante
descarregou-se sobre ela. Como não estava presente, não notei o estrago nos
primeiros dias. Semana seguinte havia leve descoloração na ponteira do
pinheiro. Noutra semana um pouco mais. Numa meticulosa inspeção constatei o
pior. Tinha sido uma descarga atmosférica ocorrida durante uma tempestade,
então confirmada pelo caseiro. Na esperança de que o estrago pudesse ser
superado, não a sacrifiquei. Doía-me a alma cortar uma árvore ferida, de quase
dois metros de circunferência e mais de 25 metros de altura. Haveria de se recuperar.
Mas, infelizmente, depois de uns cinco meses estava totalmente seca e os vendavais
com as chuvas de verão já haviam decepado seu terço superior. Não me restou alternativa
senão contratar especialistas para abatê-la por completo. Verdadeiro golpe na
alma. Ali jazia quem nos alegrara por tanto tempo..., exatos 32 anos. Definitivamente isto não estava nos planos.
Retirados os escombros restou um vazio, cenário mutilado,
deixando-nos um buraco na alma. Só mesmo quem está acostumado com a natureza e
as belezas de um jardim, sabe entender e avaliar esse sentimento. Parece que os
pés da gente têm raízes invisíveis, disse certa vez um renomado paisagista. E
essa raízes invisíveis nos “plantam” no chão e fazem com que nos identifiquemos
com as plantas de nossos jardins. E raízes precisam de cuidado, de amor.
Jardins também. Plantar árvores e flores é
colher felicidade, pois até mesmo uma simples árvore plantada é um anúncio de
esperança. Especialmente se for uma árvore de crescimento lento, pois plantamos
sabendo que talvez nem iremos comer dos seus frutos ou sentar à sua frondosa sombra…
Plantamos pensando naqueles que comerão de seus frutos e se sentarão à sua
sombra. E isso bastará para nos trazer felicidade. E neste caso, do pinheiro
de natal, ao contrário colhi tudo isso e muito mais. Era uma árvore que
“falava”. Falava? Sim pela sua beleza pelos pássaros que nela se abrigavam e se
alimentavam, cantavam e alegravam o ambiente. Seria loucura ouvir as árvores,
os jardins? Que nada, até Guimarães Rosa os ouvia: “São muitos e milhões de jardins, e todos os jardins se falam. Os
pássaros dos ventos do céu – constantes trazem recados”.
Mas e a tristeza pela perda de uma árvore? Bem..., é
normal o sentimento de perda. Para começar, tratava-se de uma belíssima árvore,
plantada e cuidada com zelo e ao final desfrutando de tudo que ela
proporcionava, até mesmo como moldura natural da casa. Paisagem prontamente
identificada pelos netinhos, ainda na estrada, bem distante, ou até mesmo em fotos
aéreas. Não se pode esquecer que ao plantar um jardim nele depositamos a
felicidade dos tempos de infância e das alegrias passadas como se fosse uma
busca do tempo perdido. Assim, ele carrega uma elevada e forte carga emocional,
além do gosto na escolha das espécies de flores, árvores e demais complementos
paisagísticos. Mas, isto é diferente da melancolia, aquela que só chora as
alegrias perdidas, sem esperança de que elas possam ser recriadas. E a
propósito, vejam que belo poema, de Angelus Silésius:
“Se,
no teu centro um Paraíso não puderes encontrar, não existe chance alguma de,
algum dia, nele entrar”.
Os jardins são nossos Paraísos. Fazemos parte da
natureza. As flores são como as
crianças, trazem amor e vida e têm o poder de desarmar, emocionar as pessoas. E
como as crianças, trazem-nos a lembrança da renovação da vida. Criei meu jardim
e já recriei a árvore perdida. Se da primeira vez as filhas ajudaram a plantar
e cuidar, desta vez os netinhos a replantaram e estão cuidando da nova árvore,
no mesmo lugar. Esperança que se renova, nos velhos e nas crianças que aliás, andam no mesmo compasso, como disse nosso poeta maior, Rubem Alves.
Assim é a vida. Acabou a tristeza, renasceu a esperança com a nova
árvore ali replantada. Não foi a toa que Proust disse que: "os verdadeiros paraísos são os que
perdemos" e o poeta Mário
Quintana ensinou que "a gente continua morando na velha casa
em que nasceu".
Para quem nasceu e
cresceu em meio à natureza, na zona rural e na chácara ao redor da cidade, faz
sentido. Paraíso sempre!
Plante um jardim, faça seu próprio paraíso e more nele.
Plante um jardim, faça seu próprio paraíso e more nele.
Brasília, 05
de abril de 2015
Paulo das
Lavras
O replantio de um
pinheiro de natal. A segunda geração
cuidando de recuperar a grande perda. Plantar uma árvore
é renovar as esperanças - 2014
O pinheiro que servia para
decoração de natal. Simone e
o menino do caseiro – dez 1984
A imponência dos dois
pinheiros, vista de cima,
como torres de vigia da casa,
20 anos depois
As majestosas “torres de vigia”
vistas por trás da casa
Os pinheiros serviam de abrigo
dos pássaros. Filhotes de pomba trocal (asa branca)
caíam do ninho. Na foto uma
dessas, já adulta, criada em casa,
vinha comer na mão do
visitante e na hora do lanche voava até à cozinha
Qualquer que fosse o visitante
e se estivesse com comida na mão,
lá ia a “Titinha” pedir a sua
parte. Hora do almoço e lanhe, na varanda
ou churrasqueira, sempre tínhamos sua companhia.Viveu mais de
15 anos assim, voava do alto
dos pinheiros e buscava a companhia das pessoas
Numa tempestade de verão um
raio fulminou um dos pinheiros
O operário com sua motosserra.
Ao colocá-lo abaixo, também “cortou” meu coração...
...que viu ser abatido o gigante de mais
de 25 m de altura e 32 anos de idade,
...deixando dois grandes vazios, na
paisagem e na alma que teve suas
raízes invisíveis
também cortadas
Restou apenas o irmão gêmeo...um gigante solitário também
maltratado pela tempestade
..mas, as crianças da geração seguinte cuidaram, com
muito carinho, de replantar outro pinheiro de natal,
recompondo o nosso “paraíso” que foi devastado por
uma tempestade
... e um ano depois já estava com dois metros de
altura – janeiro de 2015
Minhas raízes invisíveis se estendem, entre tantas
árvores que plantei, pelos pés de peras cujas frutas, em
abundância, balançam sobre o tapete rosa do ipê em
plena florada de julho
... e também por muitos canteiros de flores, cujas
raízes embora frágeis,
em relação ao
vigoroso tronco da mangueira em primeiro plano à esquerda da foto,
todas elas fortalecem
as raízes invisíveis de minha alma, nascida, criada e
formada na agronomia, em meio à plena natureza.
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