Lyon
é a terceira maior cidade da França, situada à margem do rio Ródano, na região
alpina e não muito distante da fronteira com a Áustria. Ali nasceu Henry Avalon
que, por volta de 1920 veio visitar o Brasil. Conheceu o Rio de Janeiro e se encantou
pela cidade, onde conheceu uma brasileira por quem se apaixonou. Meses depois retornou,
definitivamente, para ficar e morar no paraíso tropical que os franceses tanto
adoram. Logo depois decidiu fixar residência na pacata cidade de Lavras dos
anos 1920. Alguns dizem que foi por causa do boom do café do sul de Minas, que
dominava os negócios de exportação. Certamente conhecera algum brasileiro exportador
de café, no Rio ou mesmo nas noitadas francesas, quando provavelmente lhe
sugeriram a cidade de Lavras para investir em negócios do ramo de cultura e
diversão.
O Monsieur Henry estava acostumado a levar
brasileiros para um tour pela cidade luz, a efervescente Paris. Seus périplos
noturnos começavam com jantar no primeiro andar da Torre Eiffel, seguindo-se um
cruzeiro pelo Sena, no famoso Bateau Mouche e finalmente uma noitada no Moulin
Rouge. Esse era o roteiro turístico mais procurado pelos turistas-fazendeiros
endinheirados. No jantar regado a bons
vinhos, na glamorosa torre, deslumbrava-se a bela vista panorâmica da enorme esplanada
Des Invalides, o Arco do Triunfo e o Campo de Marte, entre outros. O passeio
pelo Sena, com duração de uma hora e vinho de cortesia, permitia ao turista
admirar os monumentos ao longo de suas margens, como o Museu d´Orsay, Museu do
Louvre à esquerda, Catedral Notre Dame e a própria Torre Eiffel à direita entre
tantos outros pontos de atração. Após o desembarque, segue-se para o show
“Féerie” do Moulin Rouge, acompanhado de champanhe.
Paris, uma profusão de cabarés chiques como o Paradis Latin e Moulin Rouge
Desse
belo roteiro que o Monsieur proporcionava aos fazendeiros do café brasileiro,
cumpri as duas primeiras partes na época em que desempenhei várias missões oficiais,
de média duração, do Ministério da Educação na França. Não frequentei o Moulin
Rouge, mas vi o Bataclan e deu para entender os anseios do Monsieur Henry
Avalon... Não daria para levar para o Brasil o Rio Sena, a Torre Eiffel e
tampouco o Moulin Rouge. Mas, cansado de ciceronear brasileiros, naquele
atrativo e aprazível roteiro, decidiu montar no Brasil, mais precisamente na
culta cidade de Lavras, acostumada ao belíssimo Theatro Municipal, de Francesco
Pizzolante, um cabaré do naipe daquele ou de seus similares como o Lido e
outros. Bastaria levar uma troupe de bailarinas e coreógrafas...
O Menino das Lavras, nos tempos de jovem
executivo da educação superior, em Paris, cobiçando um passeio no Bateau Mouche pelo
rio Sena. ... ... e nele tomando um bom rouge, apreciando o
belo cenário parisiense, pensando nos feitos do M. Henry Avalon: criou um
cabaré francês na minha cidade natal - Lavras. Fotos: do autor
O
projetado empreendimento “artístico e cultural” do Monsieur tinha tudo para dar
certo. Estavam em pleno período da
Belle Époque, de grande ostentação, incluindo até a compra de títulos de
nobreza na Europa e por aqui. No Brasil a compra de patentes da Guarda Nacional
era uma maneira de ostentação dos abastados fazendeiros do café. Daí a profusão
de barões, coronéis, capitães e majores entre a elite rural. Foi uma época de
franca expansão das invenções como o automóvel, telefone, avião, telégrafo sem
fio, casas de óperas, livrarias e cafés. Foram tempos de grande efervescência
cultural. Em Lavras, por exemplo, mais precisamente em 17 de fevereiro de 1917,
inaugurou-se o Theatro Municipal, cópia do Scala de Milão, quando
Francisco Pizzolante, seu fundador, trouxe a Companhia Lírica Rotoli-Billoro,
que encenou a famosa ópera “Aída”, de Verdi. O cinematógrafo que chegou à
cidade por volta de 1900, funcionou por muito tempo, com o nome de Cine
Municipal, no prédio do Theatro Municipal. Migrou para o salão do Colégio
Aparecida, de 1960 a 10 de fevereiro de1962, quando se inaugurou o Cine Brasil,
na Praça da Bandeira, ao lado da Igreja Presbiteriana.
O belíssimo
Theatro Municipal de Lavras, reprodução do Scala de Milão, com luxuoso interior
em três níveis.
Obra de Francisco Pizzolanti, inaugurada em 1917, três anos ante do projeto do
cabaré francês
Fotos: arquivo de Renato Libeck
Fotos: arquivo de Renato Libeck
Os “causos” do cabaré Taça de Ouro
Não foram encontrados textos sobre a
história do cabaré francês em Lavras, porém a sua história oral ainda é
bastante viva. O artista, pintor e memorialista, Luiz Teixeira da Silva, do
alto de seus 93 anos bem vividos nos relatou, com extrema lucidez e detalhes, alguns
casos sobre o cabaré francês lavrense, o Taça de Ouro. Alguns amigos foram
visita-lo, recentemente e contaram a ele que um de seus amigos, Pedro Neves, já
falecido, deu muito “trabalho” no final da vida, pois contava muitos causos do
tal cabaré e insistia para que os filhos chamassem o Sr Luiz Teixeira para,
juntos, irem ao cabaré francês. No seu leito, se comprazia com suas lembranças,
imaginando que ainda era e estivesse nos tempos de sua juventude. Daí, então a
insistência para que chamassem o amigo para acompanha-lo a assistir o show das
belas francesa dançarinas de can-can, no Taça de Ouro.
Ao
saber, recentemente, do inusitado convite para ir ao Taça de Ouro, Sr. Luiz
gargalhou a semana inteira, contaram os amigos da família. Nunca recebera o tal
convite, pois ninguém foi doido o suficiente para transmitir-lhe o convite para
visitar a zona, fato comum na juventude, mas que soava indecoroso em meio à
família de um quase nonagenário e respeitado senhor. Mas, também, ninguém
saberá se ele teria aceitado o convite, caso tivesse sido informado a tempo. Nem
mesmo os mais chegados ousaram perguntar-lhe e assim tomamos conhecimento da
história que acabou virando piada. Mas, não poupamos perguntas aos demais
entrevistados, parentes e amigos de Pedro Neves, Henry Avalon e do próprio Sr.
Luiz que desfiou um rosário de casos pitorescos envolvendo amigos e até desconhecidos
que lhe confidenciavam as peripécias, os cuidados e os medos da época, numa
sociedade que fingia ignorar a questão dos prostíbulos e a saúde pública. Mas,
um cabaré com legítimas francesas se exibindo em trajes sumaríssimos, numa pacata
cidade do interior, era, de fato, um caso raro e por isso atraía as atenções.
Os
cabarés franceses apresentam shows de can-can nas cores bleu, blanc, rouge e várias outras atrações. Foi sucesso total na
culta cidade dos ipês e das escolas! Pedro Neves, assíduo frequentador desses
espetáculos no Taça de Ouro, imaginava e queria, no final de sua vida, “assistir
ao show” ao lado de seu amigo de juventude, Luiz Teixeira. Para ele, quase
nonagenário, o Taça de Ouro ainda existia e ele ainda seria um jovem... Fotos: Internet
Sr
Luiz, entusiasmado com a recordação dos fatos de mais de setenta anos, contou muitos
casos da “zona” com inúmeras casas de tolerância, especialmente do Cabaré Taça
de Ouro. Ali as meninas causavam furor. Nunca havia sido visto antes na cidade
uma legítima francesa, exótica, de pele alvinha, maquiagem finamente carregada
e roupas extravagantes para a época, sobretudo em pacata cidade do interior.
Quando essas “meninas” saíam às ruas, causavam intenso alvoroço, quer pela
rapaziada extasiada ou pelas próprias mulheres da sociedade, que não se
continham e disfarçavam olhares de soslaio. Quando flagradas apreciando a cena,
simulavam um espanto de horror, contava Sr. Luiz, que ainda se lembrou de
alguns nomes daquelas “meninas”.
Nunca
vimos tanto brilho nos olhos e satisfação ao contar esses causos e relembrar o
amigo Pedro Neves, seu companheiro de juventude nas visitas ao cabaré francês
de Lavras. Continuando suas histórias, contou que trabalhava numa loja em
frente à Santa Casa de Misericórdia, para onde acorriam os infectados com as
“doenças de rua”, com seus nomes exóticos, Mula, Jacaré de Crista,
Cavalo, Fogagem... A Policia Militar, que naqueles
tempos chamava-se Batalhão de Caçadores e mais tarde 8º Batalhão de Infantaria,
trazia, pelas mãos do enfermeiro Nêgo, muitos soldados para se tratarem, ali
naquele hospital, com os médico já calejados, tantas eram as doenças venéreas. Os
jovens soldados chegavam envergonhados e amedrontados com as terríveis injeções
do tipo benzetacil e outras que deixavam o traseiro “aleijado” por muitos dias.
Pior eram as raspagens com sondas que pareciam perfurar as tripas e fazer
desmaiar o paciente, sob o olhar cínico dos enfermeiros e gargalhadas como a
recordar que o prazer tem seu preço, disse Sr Luiz.
Antes
de entrar para a sessão de tortura médica, os “pacientes”, passavam pela loja
em frente e choravam as mágoas, ou melhor, o medo, para o atento amigo Luiz
Teixeira. Agora, não escondia sua ironia ao contar isso tanto tempo depois e
todos que a escutavam gargalhavam até chorar, imaginando aquele desfile de
guapos rapazes, fragilizados, aterrorizados como meninos em dia de vacina no
bumbum. E pior, os algozes ali, com os instrumentos cirúrgicos a rirem e a
plateia do outro lado da rua, na loja do Sr Luiz. Assim, sem querer, descobri
com seus causos que havia uma parte da história de Lavras que ainda não fora
contada. Sr Luiz Teixeira da Silva é mesmo um memorialista fantástico e com
grande senso de humor.
Antiga Santa
Casa se Misericórdia de Lavras, fundada em 1865, ao lado da Igreja Matriz. Ali
os guapos rapazes iam se tratar das doenças venéreas adquiridas no Taça de Ouro
e redondezas. Sr Luiz Teixeira, que trabalhava na loja em frente, dava-lhes
conforto moral, mas avisava que as sondas uretrais e as injeções eram
terríveis. Só faltavam chorar como crianças... e ele, Sr Luiz, também, porém de
tanto gargalhar vendo o medo, o pavor de quem parecia estar condenado à
morte..... Perguntei-lhe se essa “maldade” não escondia um pouco de inveja dos
rapazes que pernoitaram com as lindas madames francesas, respondeu-me,
matreiramente... “que não se lembrava...”
Foto: arquivos de Renato Libeck
Foto: arquivos de Renato Libeck
Mas,
há ainda outras histórias muito engraçadas, envolvendo a “zona”. Verdadeiros
“causos” que dariam enredo a um livro inteiro. Em passado não muito distante, contou-me
o saudoso Sr Chiquinho Narciso e relembrado pelo mano, Anízio Pereira da Silva.
Embora todos os casos relatados sejam verdadeiros, alguns nomes foram trocados
para proteger a identidade dos protagonistas. Este memorialista não inventa...,
só aumenta um pouquinho para apimentar os causos e por isso garante, são
verdadeiros e certamente ainda há pessoas em Lavras que deles se lembrem.
Porém, antes de prosseguir com os relatos dos casos, verdadeiros, é necessário
compreender o contexto social da época, a inserção das casas de espetáculos e
prostíbulos nos costumes dos grandes centros e cidades do interior. Nesse
particular a bibliografia nacional é farta, descrevendo o pensar e o agir da
sociedade de então, quase sempre encoberta por pura hipocrisia do fingir que
nada existe e nada se sabe.
O
cabaré francês em Lavras
Naqueles
anos da década de 1920 a cidade de Lavras não contava mais que 20.000
habitantes e a economia se baseava quase que exclusivamente na agricultura,
predominando a produção de café, cereais e gado de leite. O café naquela década
se despontava como a produção mais rendosa da região. Era um produto fino,
próprio para a exportação. O mês de junho, época da colheita, era ansiosamente
esperado pelos comerciantes da cidade, pois costumava passar por ali o famoso
negociante de café para exportação, Sr Diano, da cidade de Dores da Boa
Esperança, casado com uma lavrense, a prendada e culta Sra Carminha Azevedo
Alves, filha do não menos conceituado Capitão Evaristo Alves. O Capitão, como
era conhecido, mandou construir o mais bonito sobrado da cidade, situado ao
lado da Igreja do Rosário, na praça central. Diano, seu genro, comprava e
pagava à vista toda a produção de café dos fazendeiros. Não raras vezes trazia
à Lavras sua família e se hospedava no sobrado do Capitão, conforme contava
Rubem Alves, seu filho mais novo, o conhecido e famoso escritor, filósofo e
poeta falecido em julho de 2014.
O belíssimo
sobrado do Capitão Evaristo Alves, avô do filósofo e escritor Rubem Alves.
Diano, seu genro,
comprador de café, abastecia a cidade com dinheiro vindo de seus negócios de
exportação. A fama do dinheiro em Lavras chegou à Paris e como isso, incentivou
o M. Henry Avalon a construir um cabaré francês. Nesse belo sobrado, do Capitão Evaristo, ficava o famoso piano Pleyel,
sempre afinado pelo saudoso Paulo dos Pianos e que dona Carminha Azevedo
importou da França. Ali, na década de 1970, muitas moças de Lavras
aprenderam a arte de tocá-lo, com a professora, Cecília Azevedo, bem ali
no segundo andar.
Foto de 1958.
Hoje ali funciona o Banco do Brasil. Ao lado, à direita, é a Igreja do Rosário,
onde os garotos montavam seus caixotes de engraxate - arquivos de Renato Libeck
A
colheita do café fazia circular uma montanha de dinheiro extra na cidade. Era época
do comercio faturar alto. Por outro lado, a vida cultural da cidade era bem
restrita. Havia, sim, o Theatro Municipal, obra do mecenas Francisco Pizzolanti
e que de vez em quando trazia uma troupe do Rio ou mesmo da Itália para encenar
óperas e recitais. Assim, com seu olhar arguto de frequentador de shows em
Paris, Bordeaux e Lyon, o monsieur Henry, homem culto e de grandes posses, teve
a ideia de movimentar um pouco mais a vida na "ville de Lavrás, l´état du Minás Gerráis". Aprendera o
português, abrasileirou seu nome para Henrique e voltou à França para realizar
negócios, ou melhor, importar um negócio. Em Paris contratou algumas artistas,
incluindo uma coreógrafa e assim fundou, em Lavras, uma casa de shows e
entretenimentos privados para clientes especiais. Nasceu então o cabaré de luxo
que oferecia espetáculos à semelhança daqueles do Moullin Rouge, Lido e outros
não menos famosos de Paris e que ele tanto apreciava. Batizou-o com o nome de “Taça de Ouro”.
Para
abrigar seu visionário e inovador empreendimento já havia construído em Lavras
um casarão, com amplos salões, situado no cruzamento das ruas Álvaro Botelho e
14 de Agosto. Eram dois grandes salões onde as damas francesas circulavam pelas
mesas repletas de fazendeiros, barões do café e do gado de leite. Sentavam-se,
cumprimentavam com um solene bon-jour
(os clientes, que só falavam português, nunca entenderam porque o bom-dia... bom-jour, embora fosse noite), pediam
bebidas e convidavam os visitantes para dançar. Mal falavam português, mas
naquelas condições e para os fins a que se destinavam os encontros e diante de
tanto vislumbre e da novidade estrangeira do mais chique naipe, importadas
diretamente de Paris, quem iria se importar em compreender palavras se os
gestos eram mais diretos? Logo em seguida, às 20:30 horas, tinha início o show,
num palco bem ao estilo de um teatro e que se localizava entre um e outro salão.
As madames francesas agradavam
bastante com o show bem ao estilo can-can, sob a batuta de estrondosa
orquestra, chamada de “jazz”.
Cabaré a la français, “Taça de Ouro” , construído na
década de 1920. Funcionou
até 1940/50 com esse nome e depois, “Boate Capixa”, por
mais uns vinte anos.
Prédio com enormes
salões, construído por Henry Avalon, francês da cidade
de Lyon e que se radicou em Lavras desde o ano de
1920.
Foto: Marcília Teixeira
Lavras
não era e nunca foi uma estância hidromineral, mas tinha uma grande atração: o cabaré
francês como era conhecido, com lindas madames que, além de atender os clientes,
dançavam divinamente o can-can com a mesma coreografia do Lido ou do
Moulin-Rouge parisienses. Ao contrário das cidades de São Lourenço, Caxambu,
Lambari e outras como Poços de Caldas – a Las Vegas brasileira, que chegou a
ter 20 grandes cassinos, que podiam explorar o “motivo” da atração das “fontes
milagrosas” sulfurosas e alcalinas. Essa era a grande vantagem, a “justificativa”
para quem queria apenas se divertir com jogatina e belas mulheres. Ninguém dizia que iria a aquelas cidades para
jogar ou se divertir, mas sim para se tratar nas águas “milagrosas”. Mas, a
verdade era bem outra, basta dizer que Caxambu, uma das mais famosas estâncias,
mantinha, em 1922, oito orquestras contratadas permanentemente para abrilhantar
os salões dos cassinos dos hotéis. Certamente o objetivo dessas numerosas
orquestras não era o “tratamento acústico” de respeitáveis senhores... No
entanto, esposa alguma imaginaria algo em contrário à fama de cidades das águas
milagrosas e o marido podia então, tranquilamente, “tratar” da saúde... É fato
também que naquelas cidades as belas mulheres eram discretas e só atuavam em
recintos fechados nas casas de diversão e hotéis de luxo, contam os
historiadores. Até a igreja fez vista grossa quando os donos de cassinos
passaram a contribuir, com a renda de um dos dias santos, para os cofres da
paróquia, conforme noticiou um jornal de Poços de Caldas. Até mesmo o
presidente Getúlio Vargas era assíduo frequentador daquela estância
hidromineral, mantendo uma suíte exclusiva no Grande Hotel, com a mesma
decoração usada no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, a então capital
federal.
Nota de 10 cruzeiros,
moeda que substituiu o mil réis no auge da jogatina, em 1942, com a esfinge de
Getúlio Vargas, assíduo frequentador dos hotéis de luxo das estâncias
hidrominerais de Minas Gerais.
Não foi à toa que o
circuito das águas teve a primeira rodovia asfaltada no sul de Minas, ligando
as cidades de “águas milagrosas” à antiga capital do país, Rio de Janeiro.
O Cassino de Lambari ficou famoso pela imponência
da sua construção, o Castelo, assim chamado por Rubem Alves, neto do Capitão
Evaristo, de Lavras, que morou bem ao lado daquele famoso cassino, de 1938 a
1939, quando sua família para lá se mudou. Essa majestosa construção, de
Lambari, em estilo barroco, foi inaugurada em 1901, por obra e graça de um
megalomaníaco, Américo Werneck (1855-1927), político que acabara de ser
exonerado do cargo de prefeito de Belo Horizonte, na virada do século e então
se propôs a construir, a partir do zero, uma cidade inteira – Lambari, e nela o
belo cassino.
Diano, o novo vizinho do castelo, pai
de Rubem Alves e genro do
Capitão Evaristo Alves de Azevedo, tendo falido seu próspero e rendoso negócio
de exportação de café, após o crack da bolsa de valores de Nova York de 1929,
decidiu entrar no ramo do comércio ambulante – cometa, ou mascate - como eram
chamados esses vendedores. A cidade de Lambari era, segundo ele, um ponto
estratégico para percorrer as cidades vizinhas na busca de clientes para seu
comércio ambulante. Rubem Alves, no entanto, duvidou dessa razão defendida por
seu pai. Dizia que, a ser assim a escolha recairia sobre Três Corações,
importante entroncamento ferroviário que facilitaria a mobilidade pelo trem de
ferro. Rubem Alves imaginava que seu pai a escolheu por causa do “Castelo Encantado”
sobre a colina e que seria a sede do governo imaginário de Werneck. Talvez Diano a tenha escolhido pela
proximidade das cidades dos cassinos e estâncias hidrominerais que tinham sua
clientela interessada na saúde e na jogatina. Pouco tempo depois da chegada da
família de Rubem Alves à cidade de Lambari o castelo foi transformado em
cassino. Mas, funcionou apenas uma noite e foi fechado e tempos depois, em
1946, o presidente Dutra baixou decreto acabando de vez com a jogatina em todo
o país. Em 2013 o governo estadual transformou o Castelo em Museu das Águas,
para a preservação da memória dos tempos áureos.
O estilo francês em Lavras
A cidade de Lavras não contava com a
mesma sorte de Lambari, que ganhou um castelo, ou de Poços de Caldas e demais
estâncias hidrominerais que podiam atrair casas de jogos e de diversão, sob o
manto das milagrosas águas termais. Mas, tinha o “ouro verde”, o café, que
fazia a riqueza de muitos fazendeiros. Foi exatamente isto que atraiu os
investimentos do francês Henry. Embora o prédio do Cabaré Taça de Ouro seja de
construção simples, sem nenhum estilo que o distinguisse em relação às demais casas
comerciais da cidade, pode-se afirmar que ainda assim, tanto quanto o Theatro
Municipal, marcou a época de esplendor da cultura em Lavras, na primeira metade do século XX. O teatro com as
óperas de Verdi e outros compositores italianos e o cabaré com os shows de legítimo
can-can com legítimas dançarinas francesas. O Theatro Municipal foi demolido em
1958, em razão do temor que se tinha à época do piromaníaco, alemão, que
incendiara vários casarões. O velho Theatro Municipal estava em sua lista
pirotécnica apreendida pela polícia e assim, não foi preservado como patrimônio
cultural. Por outro lado, a memória do cabaré pareceu ainda mais duvidosa,
inibindo qualquer ação que visasse seu tombamento ou mesmo a produção de textos
sobre a sua história. Ao contrário, nas capitais e nas estâncias hidrominerais,
a crônica sobre essas casas foi bem generosa, como conta a historiadora Mary Del
Priore, em longo estudo sobre o papel da mulher, o amor, a prostituição, a
repressão sexual e a liberação desde os tempos da escravidão aos dias atuais
(História do amor no Brasil- Ed Contexto, 2005). No Rio, por exemplo, a capital
da República, a prostituição ganhou espaço no final do século XIX e início do
século XX. Foram construídos grandes bordéis e zonas de meretrício como os
cabarés, cafés-encontro, pensões-chiques, teatros e restaurantes que
facilitavam os encontros. Até mesmo a famosa Confeitaria Colombo, que era
frequentada, das 14 a 17 horas, por senhoras de família, recebia após as 17:30h
as “damas” interessadas nos fregueses. Tem-se notícia, aqui em Brasília que o
doce Marmelada Santa Luzia, produzido nos quilombos da região, era muito
apreciado na Confeitaria Colombo, do Rio de Janeiro.
No Rio e cidades turísticas havia uma grande
entourage nesse meio de diversão e
entretenimento. A movimentação de dinheiro era intensa, envolvendo uma série de
personagens como artistas, músicos, dançarinas e coristas, além dos garçons,
cozinheiras, arrumadeiras, costureiras, manicures, cabelereiras e porteiros. Havia ainda os meninos de recados para as
damas da noite de diversas nacionalidades e seus fregueses, além dos
agenciadores e porteiros que controlavam o movimento. Isto era, segundo os historiadores,
o grande espetáculo noturno da cidade maravilhosa e que movimentava muito
dinheiro. E parece, segundo a historiadora citada, que o comportamento social
daquela época determinava a procura pela prostituição: os padrões, as normas de
comportamento e os valores morais vigentes (valorização da virgindade,
monogamia e o patriarcalismo) que conferiam ao homem uma liberdade sexual
justificada e socialmente aceita. Havia, portanto, certa aceitação, ainda que
hipócrita, dos cabarés e da prostituição em recintos fechados.
A palavra cabaré tem origem francesa, cabaret. É um local destinado a shows
com mulheres e os nomes mais comuns são boate ou casa noturna, com
apresentações sensuais, mas sem strip-tease. Já os cassinos eram casas de entretenimento muito populares e apreciadas
pelas camadas sociais mais abastadas, principalmente na França da Belle Époque,
período que teve início no final do século XIX e se estendeu até o final da
Primeira Guerra Mundial, em 1918. Mas, há que se distinguir cassino e casas de
prostituição. A historiadora Maria Del Priori cita que na antiga cidade do Rio
de Janeiro, havia em três categorias, as aristocratas ou de sobrado, as de sobradinho
e as da escória. As primeiras ficavam em bonitas casas com espelhos e piano,
símbolo burguês do negócio. A segunda classe atuava em hotéis ou casas de
costureiras. Esperavam os clientes nas ruas e os levavam para aqueles locais. Na
terceira classe de pura hierarquia econômica e social, ainda de acordo com a
autora, as meretrizes da escória moravam em cortiços ou casebres e mucambos,
conhecidos como casas de passes.
Essa classificação não mudou muito,
apenas se sofisticou, com ligeiras alterações. Em BH, onde trabalhei no final
da década de 1960, havia o Cabaré da Madame Olímpia, na Avenida Oiapoque. A
zona do baixo meretrício se concentrava na região da Rua Guaicurus. Mas, também
havia, ali, os dancings Chanteclair e o Montanhês. Conheci este último,
onde havia sofisticado restaurante. Contam os mais antigos, com descrição em
blogs que “no salão de dança do Montanhês havia uma ótima orquestra e taxi
gilrs para quem quisesse rodopiar pelo salão. As moças traziam, penduradas
ao pescoço, uma bolsinha com fichas e um picotador de papel. A duração da dança
correspondia ao número de perfurações no cartão, de modo que o usuário fizesse
o acerto à saída”.
Não muito longe dali ficava o cabaré
mais sofisticado de classe média, a Casa da Zezé, do outo
lado do córrego do Arrudas, na avenida que tem o nome de um lavrense ilustre e
que foi presidente (governador) do estado, Francisco Sales. A Casa da Zezé
lembrava o estilo do Taça de ouro, com grande salão, musica eletrônica e belas
mulheres a convidar os rapazes para um drinque, dança e, naturalmente
encaminha-los para os quartos dotados de certo conforto e boa decoração com
quadros de pinturas francesas nas paredes. Lugar para um relaxamento após um
dia de serviço, como bem detalhou a historiadora, Del Priori. Disse, ela, na antológica
obra sobre a história dos prostíbulos que “o bordel funcionava como uma fuga
para uma sociedade que de dia trabalhava e tinha diversas limitações morais
sexuais” e ali, no bordel, além de negócios, o homem encontrava “o som de
musicas animadas e mulheres liberadas sexualmente”. Se casado, o homem procurava variar suas
fantasias sexuais que, em casa eram literalmente proibidas pelos cânones religiosos
e pela moral feminina da época, que era educada apenas para procriar. Se rapaz,
tinha por princípio a obrigação de devolver à casa dos pais da namorada, no
mais tardar às dez horas da noite, a mocinha pura, intocada e o fazia com
orgulho, pois aquela era uma namorada para se casar. Cumprida a obrigação moral,
dali mesmo corria para o bordel, onde tudo era permitido e assim dava vazão à
sua libido. Esse era o costume até os anos de 1970, pelo menos.
Se por aqui em nosso
meio essas atividades de entretenimento e prazer eram limitadas, em Paris havia
uma profusão de cabarés.. O Moulin Rouge e o Lido eram
os principais no final do século XIX. Neste último era o ponto de encontro de
artistas para beber, debater ideias, jantar e assistir shows de danças e outras
atrações. Nos EUA os cabarés só tiveram início a partir do final da guerra, em
1918. Esse estilo jantar-espetáculo perdura até hoje no mundo inteiro. Nesse
contexto social brasileiro e mundial, o Taça de Ouro, quando foi fundado em Lavras,
nos anos de 1920, estava mais para cabaré, se levarmos em conta que existiam
dois salões de dança, com orquestra própria. Um dos músicos, mesmo com idade
avançada, contou-nos que tocava gaita na orquestra que era muito animada. Era
um ambiente muito luxuoso, pois além das bailarinas francesas, servia bebidas
importadas, música ao vivo e ostentava uma grande placa com letras luminosas,
bem estilo “a la France”. Durante a
gestão do Monsieur Henry Avalon, até a década de 1940, os shows de can-can com
as bailarinas francesas eram a principal atração. Ali só frequentavam homens
importantes, ricos fazendeiros e empresários, conforme relatos de dois assíduos
frequentadores, naquele distante passado. E não é de se admirar, pois o cabaré
chegou na época certa. Em 1867, por exemplo, chegava ao Rio de Janeiro a
primeira leva de prostitutas polacas. Eram 104 e apenas 37 seguiram para a
Argentina. E nos anos seguintes esse número só cresceu, conforme estudos
publicados pela PUC-RJ. No início do século XX, o Rio de Janeiro era uma cidade
muito populosa e sem empregos e ainda a discriminação da mulher nas atividades
econômicas, só lhes restava a prostituição, daí haver sido a época em que mais
se proliferou a atividade de cassinos e assemelhados. Não havia repressão por
parte da polícia, daí receberem a alcunha de casas de tolerância, onde,
obviamente imperava a atividade de cafetinismo. E o fluxo de prostitutas
estrangeiras era considerável, especialmente as francesas e polacas. Para o
brasileiro, dormir com uma francesa era como se sentir em Paris, um legítimo
francês, dizem os historiadores.
Enquanto
isso, em Lavras, a 150 km das estâncias hidrominerais e 400 km do Rio de
Janeiro, o chique e caro Taça de Ouro prosperava. A seu redor proliferaram as
casas de tolerância mais humildes, conhecidas por inferninhos, casa da luz
vermelha, zona e tantos outros nomes. Essas casas mais populares se estendiam
por quase toda a Rua Álvaro Botelho, começando em frente ao cabaré francês, na
esquina da Rua 14 de Agosto. Logo ao
lado havia uma em especial, bem humilde, que se chamava “Caixote em Pé” .Tinha
esse nome porque na entrada ficava um guarda sentado em cima de um grande
caixote de madeira, contou-nos o Sr. Luiz. Os pobres coitados que frequentavam
o “Caixote” tinham tristeza por não terem condições de conhecer o Taça de Ouro.
Quando uma das dançarinas saía às ruas, causava o maior frenesi, pois era coisa
do outro mundo ver uma mulher “importada”, com maquiagem acentuada e trajes bem
sumários.
Entretanto,
mesmo naquele luxuoso ambiente do cabaré francês havia reclamações. Um dos gerentes,
Vitório Canelli, muito cioso do faturamento de uso dos aposentos (havia
vários quartos para as intimidades de praxe, como nas pensions d´artistes, do Rio ou de Paris), gritava bem alto: “pára o
jazzo..., pára o jazzo...” ao menor sinal de que os quartos estavam ociosos.
Era natural que isso acontecesse pois a boa orquestra (jazz) se empolgava na
música fazendo com que os clientes se esquecessem de “alugar” o quartos.
Parando-se a música, os “entusiasmados” cavalheiros não podiam ficar parados com
sua dama, ali no meio do salão, de tão “embaraçados” que se encontravam e
corriam a alugar os quartos. Tática infalível... e o gerente italiano
mostrava-se mais sabido que o dono francês.
As
demais casas, mais humildes e que formavam o conjunto popularmente chamado de
“zona” (zona do meretrício), se estendiam por quase toda a rua em direção ao
sobrado do Joaquinzinho, prédio de dois andares, que ficava bem ao final da Rua
Álvaro Botelho. Ainda hoje encontra-se lá, salvo da demolição. Ali era o ponto
final dos “inferninhos”, os quais foram proibidos de funcionar, pela prefeitura
municipal, na década de 1970, pois também havia residências e estas eram
obrigadas a ostentar placas bem visíveis, com os dizeres “CASA DE FAMÍLIA”.
Caso contrário seriam importunadas com visitantes indesejados, à procura de
prazer.
Em 1920 a cidade de Lavras tinha,
praticamente, uma só rua, lamacenta e servida pelo bonde, a chamada rua
Direita. Começava na Estação da Oeste e subia morro acima, por uns cinco quilômetros,
até a atual Praça do Trabalhador, na confluência das ruas Francisco Sales, Melo
Viana, José dos Reis Vilela e Rui Barbosa, a antiga Rua Umbela. Para se chegar
ao morro do Cruzeiro, no alto da atual Rua Melo Viana, existia apenas uma trilha.
Na foto, aparece, à esquerda, o
grande prédio do Grupo Escolar Firmino Costa.
Foto: arquivos de Renato Libeck
Mais
casos do cabaré francês
Interessante
notar que as teúdas e manteúdas não eram
privilégios apenas dos coronéis baianos do cacau, conforme relata Jorge Amado
em Gabriela Cravo e Canela. Também em Lavras os coronéis e barões do café se
davam a esse luxuoso e dispendioso prazer com suas cortesãs, instaladas em
casas, às suas expensas, geralmente nas proximidades do cabaré. Isto porque as
“damas” quase sempre, na ausência do coronel, davam uma escapadela até o Taça
de Ouro, ainda que às escondidas. As histórias a seguir são verdadeiras e
tiveram apenas os nomes dos protagonistas trocados para garantir a privacidade
de descendentes, incluindo o próprio menino das Lavras. Um dos casos mais inusitados
foi o de Ciro Damásio, negociante de produtos frigoríficos produzidos em Campo
Belo, para onde sempre viajava. Corria o ano de 1954 e certo dia anunciou em
casa que viajaria para aquela cidade, por um período de uma semana. Três dias
depois de sua partida, o filho Ivo, menino de apenas 12 anos, voltava do pasto,
onde hoje é a Vila Murad, após apartar os bezerros de meia dúzia de vaquinhas leiteiras
que seu pai ali mantinha, resolveu atalhar caminho pelos lados do famoso cabaré
e deparou-se com uma cena inesperada, surpreendente. O episódio ficou gravado
em sua memória para o resto da vida, a ponto de ainda hoje, mais de meio século
depois, se lembrar do acontecido nos mínimos detalhes e relatá-lo, ainda agora,
com a mesma emoção que experimentara naquele dia.
A
missão do garoto, após a tarefa no curral, era encontrar-se com sua mãe, na
casa da avó, situada um pouco abaixo do cemitério, na Rua Pedro Moura. Estava
escurecendo e por isso não quis dar a volta pela Rua Umbela (atual Rua Rui
Barbosa....) onde alcançaria o bar Polar, a Rua Francisco Sales onde morava, e
percorreria toda a sua extensão até o grupo Escolar Firmino Costa alcançando a
Pedro Moura, a um quarteirão à esquerda. Em vez disso, atalhou, direto, pela Rua
14 de Agosto, atravessou a Chagas Dória, prosseguindo a14 de Agosto até a
esquina da Álvaro Botelho. Nessa famosa esquina e já quase escuro, vislumbrou
as luzes azuis e vermelhas fluorescentes brilhando. Era o Cabaré francês, Taça
de Ouro...! Arregalou os olhos de menino curioso para melhor ver o lugar
proibido. Afinal, menino entrando na puberdade o interesse era em dobro. Aproximou-se
e levou um baita susto... O Jeep Willys de seu paizinho (como ele o chamava)
estava ali estacionado, bem em frente à porta principal do luxuoso cabaré.
Conferiu detalhes, a placa e tudo. Era ele mesmo., pois até as botas e o chapéu,
jogados na parte de trás do jeep, conferiam.. é mesmo o paizinho, concluiu Ivo.
Como assim? Não estaria ele em Campo Belo e ainda faltavam uns dois dias para voltar?
Mas poderia ser que o paizinho tivesse emprestado o jeep para algum amigo, ou adiantou
a volta. Foi conferir. Temeroso e coração disparado a mil, aproximou-se da
porta principal, de onde fulguravam as luzes e ecoava o som alegre, com
mulheres deslumbrantes a bailar como quem convida os cavaleiros para uma dança.
A porta, recortada horizontalmente, tinha apenas a parte de baixo fechada
(seria para evitar a entrada de cachorro ou crianças que eram abundantes, na
rua? Nunca se saberá...). Abaixou-se, quase engatinhando, aproximou-se e cuidadosamente
levantou a cabeça buscando ver o que havia lá dentro. Ingrata surpresa, lá
estava seu paizinho, acompanhado de três outros amigos que o menino conhecia
muito bem, o Chiquito, Paulo do Nilson e um tio, justamente o mais querido,
conhecido por Capitão, seu padrinho. Abaixou-se, assustado, voltou a olhar
quando uma garçonete em trajes sumários servia a mesa. Imaginou mil e uma
aventuras, mas, a realidade chocante foi maior. Era demais para o menino...
Saiu em desabalada carreira rua abaixo, coração disparado, contornou os fundos
do cemitério, chegou ofegante à esquina do Sr Arganti, dobrou à esquerda e
chegou à casa da vó. Entrou cabisbaixo, pediu a benção da matriarca e da
mãezinha que estava com um bebê colo. Voltou para a soleira da porta da sala e
ali ficou pensando como iria contar o que viu.
À
saída, depois de uma meia hora e já na porta da rua, a vovó perguntou à mãe do
menino cabisbaixo, para onde havia viajado e quando Ciro voltaria. Antes que
ela respondesse, Ivo disse: mãezinha, o paizinho não viajou. Ele está agora,
ali no Taça de Ouro, ele e os tios. As duas mulheres se entreolharam,
estupefatas com a notícia dada pelo menino de apenas 12 anos. Não acreditaram,
mas diante da firmeza e detalhes repetidos e o semblante de espanto do filho, a
mãe entregou o bebê para a sogra e foram, os dois, mãe e filho, caminhando
lépidos até o Taça de Ouro. Para sorte de Ciro, os quatro amigos haviam acabado
de sair e segundo o porteiro, haviam entrado numa casa próxima, apontando-a.
Ivo reconheceu–a como a casa de um dos tios que estavam com seu paizinho e para
lá se dirigiram. Lá encontraram os quatro homens e a companheira de um deles.
Era uma companheira fixa, manteúda de casa montada pelo fazendeiro Capitão,
como era conhecido. Era comum, naquela época, os fazendeiros retirarem do
cabaré aquela de sua preferencia e viver maritalmente com a mesma e com
exclusividade. Havia amigos que juravam que essa “exclusividade” era um tanto
duvidosa e todos nós, os rapazes sabíamos disso e alguns até tiravam proveito.
Mas, pelo sim, pelo não, foi o que aparentemente salvou Ciro de uma situação
pior. Estava ali, segundo ele, para tratar de negócios com o amigo e tinha ido
ao Taça de Ouro apenas para busca-lo. Ainda assim ele teve que se explicar para
a esposa e a mãe, a vovó, que ficara apreensiva, com o menorzinho no colo,
aguardando uma tragédia maior.
Ivo,
que tornou-se médico e mora no Rio de
Janeiro, ainda hoje confirma a história com muita graça, mas segundo ele
próprio, nunca acreditou na versão do pai que era um irreverente festeiro e
gostava de brincar e fazer piada com todos. Certamente o Sr Ciro ficara
hospedado na casa da manteúda de seu compadre e dali transitavam para o Taça de
Ouro. Ninguém nunca mais falou nisso. Nem os amigos nem ele próprio, pois numa
sociedade com viés patriarcal, autoritário, vigente nos meados do século
passado, o melhor era mesmo aceitar, ou fingir acreditar na versão apresentada
pelo protagonista. Acreditar ou não, nem importava. Valia apenas a palavra ou a
ordem do coronel, ou melhor, no caso do capitão, amigo do pai e marido flagrado
no cabaré. Aliás, o uso de títulos nobiliárquicos adquiridos pela elite rural, era
costume desde a época do império e demonstrava poder e prestígio na sociedade
dos séculos XIX e XX em sua primeira metade.
O
fazendeiro Ciro e sua bela montaria, bem arreada. Um luxo! Porém, não estava nela
quando flagrado no Taça de Ouro e sim no seu Jeep Wyllis . (Foto: arquivos do
autor ). Ao lado, Madame Pompadour, a poderosa cortesã do rei Luiz XV, Ivo, ainda hoje, médico no Rio de Janeiro, aos
12 flagrou o pai no cabaré Taça de Ouro. Disse que a manteúda
do capitão, seu padrinho e amigo de seu pai, era bonita. Mas, não soube dizer se se parecia
com a Madame Pompadour, Foto:
internet
Há ainda muitos casos acontecidos
por mais de cinco décadas naquela casa de diversão, mas, para isso teríamos que
editar um livro de mais de mil páginas. Entretanto, não se pode deixar de
contar outro, bastante engraçado. O fazendeiro, viúvo, Sr Fábio, morava na
cidade. Naqueles anos de 1940/50 a maioria deles ainda morava nas fazendas e só
os filhos residiam, com a mãe, na cidade para estudar. Este, no entanto, por
ser viúvo, decidiu morar na cidade, na esperança de arranjar novo casamento.
Era frequentador assíduo do Taça de Ouro. Dizem que tinha uma preferida por lá
e gostava de presenteá-la com uma dúzia de ovos, fresquinhos, colhidos no
galinheiro de seu imenso quintal que se estendia da Francisco Sales até a
Misseno de Pádua. Todos os sábados, à tardinha tomava seu banho de chuveiro de
água aquecida pela serpentina do fogão à lenha (nos anos 40/50 os fogões eram todos
à lenha, pois o gás só se difundiu em Lavras a partir dos anos 60/70), vestia a
melhor e mais alva cueca samba canção de algodão Canário ou morim Ave-Maria,
que era fabricado em Taubaté desde o ano de 1910 e colocava o indefectível e o indispensável
terno de brim cáqui (fazendeiros só andavam, a pé ou de Ford T 29 ou ainda à
cavalo, trajando terno de brim, resistentes e leves e o chique chapéu de couro
de lebre, da marca Prada ou Ramenzoni, importado da Europa). Perfumavam-se com
uma agua de cheiro, comprada no Armazém do Julinho ou do Manoel Alves e pronto
estava para a visita esperada ansiosamente a semana inteira.
Antes, porém, o Sr Fábio, todo faceiro, pegava
o presentinho, apenas um mimo para a amada e para não chamar atenção dos
familiares, escondia os ovos nos bolsos laterais do paletó. Meia dúzia,
empalhados, em cada lado. Mas, havia um senão. Seu vizinho era nada menos que o
Sr Chiquinho Narciso, o homem mais alegre e brincalhão que viveu nas Lavras dos
anos de 1920 a 2.000. Adorava um “mal feito” e para tanto não escapavam nem os
vizinhos de sua Farmácia Santa Terezinha. Assim, sabedor da mania de levar ovos
nos bolsos para a sua manteúda, do Taça de Ouro, fazia questão cumprimenta-lo, quando
passava em frente à farmácia, dando fortes tapas com ambas as mãos na altura
dos bolsos do paletó. Não sobrava um único ovo..... , desastre meloso e amarelo
sem igual. Chiquinho gargalhava e toda a plateia em volta delirava com a
embaraçosa situação. E mais gargalhavam quando, cerimoniosamente, logo em
seguida apresentava um formal e cínico pedido de desculpas ao amigo. Fábio, depois de uns três encontros desastrados
com o “amigo”, tratou de desviar o caminho. Do outro lado da rua ,
matreiramente, dava um adeusinho para seu algoz, longe dos “efusivos”
abraços.... Este, mesmo assim, caía na gargalhada reconhecendo que fora logrado
e gritava: não se esqueceu dos ovos, não? Mas, o melhor de tudo era mesmo ouvir
o Sr Chiquinho contar o caso. Não havia quem não caísse na gargalhada. Repetiu
essa história por mais de quarenta anos a todos os amigos, mas longe das
mulheres, pois dedicava-lhes extremo respeito e consideração. Um “gentleman”, o
Sr, Chiquinho Narciso, cuja casa frequentávamos para ouvir as audições de piano
de sua filha.
A Pharmacia Santa Therezinha , do Sr Chiquinho Narciso, bem em frente ao
bonde, do lado esquerdo da foto. Em frente, era o consultório dentário do Dr Gil
Serra Negra. Ali o menino das Lavras tratava de dentes e morria de rir das
“palhaçadas” que o Sr Chiquinho aprontava com quase todos os passantes ou
fregueses. Seu vizinho, Sr Fábio, “sofreu” com suas gozações e pior, a quebra de
ovos em seus bolsos, presentinho que levava para sua manteúda no Taça de Ouro.
Foto: arquivos de Renato Libeck
Para não se estender muito aí vai, por hoje, o
último caso, do carteiro Benício. Rapaz cheio de trejeitos, não era muito
chegado às meninas. Tinha pavor de entregar cartas no cabaré, pois as “meninas”
vinham recebê-lo seminuas e se insinuando, só para contrariá-lo. Sabendo disso,
muitos rapazes escreviam cartas para as damas francesas, as mais escandalosas
no vestir e no falar em seu idioma nativo. Não tinham motivo algum, ou mesmo
carta nos envelopes a não ser causar constrangimento ao carteiro. Assim, os
impiedosos rapazes se reuniam para assistir a cena da entrega das cartas às
meninas do Taça de Ouro dos bonjour..,
merci... Sr Luiz o conheceu e tinha
muita pena dele, embora muitos dos malfeitores fossem seus amigos. Mas era
impossível detê-los diante da “festa” do constrangimento, a inquietação do
carteiro e a malícia das meninas francesas.
Pois
não é que o cabaré francês das Lavras do Funil marcou época? Mas como, se nós
da geração jovem dos anos 60 nunca soubemos dessa história? Segredo? Só vimos o
cabaré que o sucedeu, o Capixaba, no mesmo endereço e nada soubemos do anterior.
Assim era a sociedade na primeira metade do século 20. Conservadora, rígida nos
costumes machistas onde, segundo a historiadora Maria Del Priore, o papel da
mulher era de completa submissão, de verdadeira repressão sexual. Ao homem, os
machistas, tudo era permitido em nome de que a ela dever-se-ia preservar a
virgindade, a castidade e ele que se valesse das teúdas e manteúdas ou ainda da
prostituição nas casas de tolerância, cujo nome já é explicativo para tanta
hipocrisia então vigente. Mas, ainda assim o Cabaré Taça de Ouro, genuinamente
francês, deixou saudades e marcas em muitos que viveram sua juventude naquela
primeira metade do século passado nas Lavras do Funil. Minha geração, nascida no pós-guerra, não chegou a conhecer a exuberância do Taça de Ouro. Sucedeu-lhe a Boate Capixaba e toda a "zona" propriamente dita. Ali, amigos e familiares "mais experientes", levavam os jovens rapazes de 16 anos para conhecer as "meninas" pela primeira vez. Esse era o costume da sociedade de então que a tudo permitia aos homens, desde cedo, e nada às mulheres. Felizmente essa hipocrisia moralista não mais perdura. Hoje, essa questão é tratada mais conscientemente entre os jovens, rapazes e moças.
Deixo
meus agradecimentos a aqueles que já se foram, Pedro Neves, Henri e seu filho Jorge
Avalon, o famoso Sr. Chiquinho Narciso e ainda aos amigos dos quais recebi os
relatos, principalmente a essa fortaleza nonagenária, memorialista sem igual
das histórias de Lavras, o amigo Luiz Teixeira da Silva, ao qual dedico essa
crônica narrativa. Também garanto que em minhas demoradas missões de trabalho
na França, ou mesmo na última viagem que fiz para duas semanas de puro deleite
na Cidade Luz, não fui conhecer nenhum cabaré, a não ser a fachada de um mais
famoso. Paris tem muitas atrações. Museus, jardins, cafés, livrarias e
monumentos ali não faltam. Foram tantas as atrações que quinze dias não foram
suficientes. Veja algumas nas fotos ao final. Cabaré? Ah... é um “trem” muito perigoso,
diz Sr Luiz, que viu muitos rapazes chorar diante dos suplícios na Santa Casa e
jurar “nunca mais”... Será?
Brasília, 26 de janeiro de 2016
Paulo das Lavras
À noite, um passeio pela mais charmosa avenida da cidade para apreciar a
decoração natalina com o Arco do Triunfo ao fundo. Monsieur Henri Avalon, que
aqui viveu e recepcionava nossos barões do café, levou um pedaço de Paris para
o Taça de Ouro. Ouro, sim, áureos tempos aqueles nas Lavras do Funil, produtora
de cafés finos, os quais, aliás, ainda hoje são servidos na Cidade Luz.
Cabaré “é um trem muito perigoso”, dizia Sr Luiz Teixeira, que conheceu
o famoso cabaré francês de Lavras...
Bem..., em Paris, o jovem menino das Lavras, preferiu não fazer reservas para o Kabaret de la derniére chance... Um monte de documentos sob o braço, muito serviço à vista, ali na Cidade Luz....
Fala sério... Será um Cabaret em Paris? Não, apenas comprando um
novo perfume recém-lançado. Somente grandes capitalistas levam um cabaré inteiro para outro país.
Levar um novo perfume já está de bom tamanho....
Não havia tempo sobrando, só trabalho. Nesta foto, em Paris, recebendo no
Ministère de l´Agriculture/ Division de l´Enseignement Agricole Superieur, uma
delegação brasileira de dirigentes universitários. O primeiro da direita é o
diretor da então Escola Superior de Agricultura de Lavras- Esal, Prof.
Juventino.
Outra boa opção, dentre tantas na Cidade Luz, são as livrarias, onde é
possível encontrar qualquer título de livro. Uma festa para leitores
compulsivos
..ou então sair às compras e almoçar em restaurantes com terraços de
magníficas vistas para a cidade, como este que deixa ver a Catedral de Notre
Dame, ao fundo, à esquerda.
E para dizer que não visitei casa de cortesã, aí está uma que foi além.
A dona desse castelo casou-se com ninguém menos que o Imperador Napoleão
Bonaparte. É o Castelo de Rueil Mal-Maison, de Josephine, situado na ville de
mesmo nome, onde me hospedava. Luxuosíssimo em seu interior. Seus degraus do
primeiro para o segundo pavimento eram bem baixinhos, pois a imperatriz era de pequena
estatura física.
Um luxo a sala de visitas do Castelo de Josefine. Mas, o Imperador
Bonaparte, não morava ali com ela....
... e como Napoleão Bonaparte, ela era ainda mais baixinha. Por isso a altura
de cada degrau da escadaria era tão pequena. Apenas uns 10 centímetros, contra
17, do normal. Dizem que as medidas foram conferidas milimetricamente pela
pequenina Josefine.
Se não quiser visitar museus e castelos, não só de cortesãs, uma boa
opção é tomar um café, na calçada de um romântico café, como o famoso Café de
Flore. Um livro, lap top, tablet ou smartphone conectados à rede Wi-Fi e lá se
vai o tempo..., mesmo sob rigoroso frio de zero grau, de dezembro. Aliás, os
aquecedores elétricos, como se vê na foto , na cor amarela, no teto, garantem
pleno conforto. Ah... o cachimbo é apenas enfeite...rsrs, e como se fuma nas
ruas de Paris. O café veio em seguida ... e puro café du Brésil! Et voilá...
Muito interessante esta crônica! Como sempre. Mas o que mais apreciei foi a elegância desse meu colega dos anos dourados!
ResponderExcluirObrigado, prezada Maria Lucia, colega dos tempos de colégio nas Lavras do Funil. Hesitei bastante em escrever sobre esse delicado tema, porém real, pois existiu o tal cabaré em Lavras. Abordei a questão de forma mais suave, situando-a no contexto histórico e social de nosso país. Eram assim os costumes ali descritos. Os casos que relatei são todos verdadeiros e em alguns preservei os nomes dos protagonistas.
ResponderExcluirEssa crônica foi gestada em Paris, quando me deparei, ao sair de um almoço, com o tal Kabaret Bataclan, numa das ruas da capital francesa, com um vistoso e sugestivo convite que aparece numa das fotos e para completar, o passeio a bordo do Bateau Mouche, com requinte dos tempos dos barões do café, conforme descrito na literatura nacional. Assim a lembrança dos anos dourados do então jovem executivo internacional, aguçaram a memoria do menino que, ao ouvir os relatos de amigos que foram protagonistas das histórias ali contadas, nos incentivaram a escrever a crônica. Um tema sensível, sim, mas abordado de maneira leve e por isso fiquei contente pela repercussão de um pedaço da história de nossa terra.
Parabéns pela crônica.Tenho 63 anos e fui um boêmio dos anos 70 em Lavras MG.Um tema sensível?Sim.Porém, esta forma de escrita se sustenta também na concepção de que a abordagem de temas sensíveis reivindica um registro o mais plural possível, possibilitando que diferentes vozes se apresentem no diálogo.Gostei muito.Abraços!Geraldo Fernandes.
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