Coloquei as mãos sobre aquele histórico canhão
das tropas de Napoleão que lutaram na Sibéria. Enregeladas pelo cortante frio
abaixo de zero na capital francesa, onde estavam expostos alguns daqueles canhões,
fechei os olhos em busca dos “arquivos” da mente sobre a história que tanto me
fascinava nos tempos colegiais. Respirei fundo, destravou-se o gatilho da alma
que disparou as imagens armazenadas nos escaninhos da mente e que sempre são
"exibidas" quando nos deparamos com um objeto ou situação que tem relação com
os eventos. Imerso naquele filme que rolava na imaginação e depois de alguns
segundos naquela letargia, ouvi a voz do colega que me acompanhava: Professeur.., professeur, est ce que vous n´êtes
pas bien? Apenas gesticulei com a mão e prossegui no meu sonho em quase
estado hipnagógico. E esse gostoso estado de transcendência acontece com
bastante frequência quando o menino se põe a ouvir a belíssima composição do
russo Tchaikovsky, a Abertura de 1812. Ali não foi diferente, com o forte apelo
presencial daqueles canhões verdadeiros e que foram protagonistas de um dos
mais significativos eventos da História, tinha tudo para dar continuidade ao “filme”
mental e não se deixar interromper pelo chamado do amigo ali presente, preocupado com a demora daquela "estátua" meditativa, paralisada e apaoiada com a mão sobre o congelado canhão. Mas, a ópera, cujo filme rodava em minha mente, um belíssimo épico que termina com o troar dos canhões disparando várias vezes com furor e o
repicar de uma alegre e festiva sinfonia de fortes badaladas dos sinos de toda
a cidade de Moscou anunciando a derrota do invasor, Napoleão Bonaparte. E as
emoções não param por alí, ou melhor, começam logo na abertura da obra por uma
melodia leve e tranquila evocando o hino russo. Em seguida o ambiente torna-se
pesado e angustiado, retratando a ameaça das tropas napoleônicas. E nesse
contexto entram os acordes da "Marselhesa", em tom triunfal,
revelando a vitória dos franceses. Mas, como dito no começo, foi uma vitória
inicial apenas, pois ao final da guerra o exército de Napoleão, que contava com
600.000 homens, ficou reduzido a apenas 40.000. Ele não contava com o “general
inverno” e a destruição de Moscou que os russos incendiaram, justamente para
não dar guarida ao inimigo. E aí então termina esse épico concerto de Tchaikovsky
com o fragor dos canhões que disparam 16 tiros, seguindo-se o repicar dos sinos
da catedral de Moscou e de toda a cidade, comemorando a vitória final sobre
Napoleão. São elementos muito fortes que imprimem um profundo caráter emotivo na
alma. Não há como não se entrar no enredo e não se deixar emocionar pelos
acordes que têm cadencia muito dinâmica e diferenciada, de paz, bravura,
euforias e tristezas do povo russo retratado como pacífico, que vive nos campos
e sofre a violência da invasão napoleônica.
Diante
de tanta beleza e harmonia sinfônica, que o menino sempre ouve em casa, no
carro ou mesmo no avião, como ainda outros elementos marcantes de sua infância
e juventude ali presentes, é impossível não disparar o gatilho que deslancha o
filme na memória distante das doces reminiscências. Assim, chegam-lhe aos
ouvidos, ou melhor, à memória, os sinos de sua cidade natal e outras
reminiscências. Em todas as pequenas cidades do interior das “Geraes” o repicar
dos sinos das igrejas fazia parte do cotidiano, nas festas de Semana Santa com
suas procissões, nas missas de domingo, nos casamentos e até mesmo nos enterros.
Cada qual com seus toques e cadências
próprios, característicos e facilmente reconhecidos, disparando emoções ora
alegres, ora tristes.
Mas,
além dos repiques dos sinos, havia em Lavras outro sonar bem característico. Às
seis e trinta da matina, invariavelmente, a sirene da fábrica de tecidos nos
avisava que o dia estava começando. Era o primeiro dos avisos para que às sete
horas estivéssemos todos a postos, meninos na escola ou os operários na fábrica
e nas Oficinas da Rede Mineira de Viação- RMV. Dali, da Fabril Mineira, ecoavam
as estrondosas sirenes, ouvidas a cinco quilômetros morro acima. Até parecia
que a longa Rua Direita servia de canal sonoro, tal era o volume de decibéis
propagados. Era também a hora de o bonde deixar a sua garage, a famosa
Distribuidora, onde a energia elétrica trifásica era transformada em monofásica
e lançada à rede aérea para movimentar o pesado veículo sobre trilhos. Em cinco
minutos chegava e partia de seu ponto final na confluência das ruas Melo Viana
e Otacílio Negrão. Hora dos meninos se aboletarem nos estribos e driblar o
cobrador Gerson e o motorneiro Cirilo que, compreensivamente, faziam vistas
grossas à meninada que ia para o colégio e não tinha os cinquenta centavos para
pagar a passagem.
Sinos...,
ah, os sinos. O repicar dos sinos nas noites de natal ou nas festas de Semana Santa....A
igreja matriz de Lavras, com sua imponente torre, era por assim dizer o ícone
da cidade. Nela podiam ser vistos o enorme campanário mostrando parte dos sinos
de bronze e os mecanismos do relógio de quase dois metros de diâmetro. Podia
ser avistada de longe e seu relógio badalava a cada meia hora. Havia também um
alto-falante de cada lado e que servia para a reprodução da Ave- Maria as seis,
doze e dezoito horas. Não há quem não se lembre daquele tenor despertando a
todos, bem cedo, com os melodiosos acordes de Gounod, ou então, a mesma
Ave-Maria orquestrada com violinos a engalanar uma cerimônia de casamento com
pompa e circunstância na igreja matriz, a mais preferida pelas noivas. Mas, o
mesmo sino festeiro também provocava emoção oposta com seus tristes repiques nas
cerimônias fúnebres. Talvez pelo sentimento de perda de um ente querido, amigo
ou mesmo de um simples cidadão, ouvíamos compungidos aquele toque dolorido,
espaçado como a nos convidar a refletir sobre os valores da vida. Vida efêmera
que ali estava representada por aquele que partia para sempre. Em respeito, o
comercio baixava as portas, numa especial deferência ao féretro em direção à
última morada, logo ali adiante a quatro quadras da igreja. Morador que fui,
por quase um ano, nas proximidades da esquina de Francisco Sales com Barbosa
Lima, a poucos metros da Matriz, presenciei inúmeras vezes essas cerimonias. O
sino da matriz de Lavras marcou profundamente a vizinhança com suas alegrias e
tristezas e hoje, em distantes terras, resta-nos a alegria de suas reminiscências.
Mas,
havia também outro sino, o da igrejinha de Santa Efigênia, no 8º Batalhão de
Infantaria, nos altos da cidade. Construída em 1952/53 por pedreiros militares,
como o saudoso amigo, sargento Bahia, o menino pôde acompanhar, de longe, toda
a sua obra. Anos mais tarde, coroinha da paróquia se Santana, da Igreja Matriz,
ajudava aos padres Tito, Luiz Tings, Miguel Moretti, Henrique Boeing e Raimundo
Weillerman a celebrarem as missas de domingo, às oito horas da manhã naquela
capela. Mas, o melhor mesmo era chegar mais cedo e tocar o sino de 15 em 15 minutos.
Nem era preciso subir os degraus estreitos do campanário. Bastava alcançar o mezanino
onde ficava o coral e dali se agarrar à corda e balançar de lá para cá, num
espaço de pouco mais de três metros. Era como se fosse uma gangorra amarrada
num galho de árvore. Aventura melhor não havia para o menino de 10 anos. Além
de tocar o sino se divertia e enchia de inveja os demais garotos que não tinham
autorização para subir até o campanário. Some-se a isso a alegria de contar
para os adultos quem era o tocador do sino que chamava os fiéis para a missa
dos domingos. Anos mais tarde, já interno no Seminário na distante Itaúna,
assistiu ao filme “Marcelino Pão e Vinho”, e qual não foi a sua alegria ao ver
a cena do pequeno Marcelino gangorreando na corda do badalo do sino de uma
igreja, tal qual fazia na capela militar de Santa Efigênia. Mais tarde ainda,
em visita ao Museu des Arts et Métiers, em Paris, assistiu à demonstração do
efeito do Pêndulo de Foucaut, cuja experiência consistiu em amarrar uma corda no
alto da cúpula da igreja e balançar continuamente, em movimento pendular,
comprovando-se o movimento de rotação da terra. Ver aquele corpo balançando
para lá e para cá, numa enorme corda de 67 metros de comprimento, pendendo da
cúpula ao lado da igreja de Saint Martin des Champs, foi como um replay do
menino balançando no campanário da igreja de Santa Efigênia badalando o sino
para arregimentar os fiéis aos domingos.
Se
antes o menino se emocionou com as imagens do filme de Marcelino agora tem
presenciado, ao vivo, as salvas de tiros de canhão em Brasília. E os canhões
foram majestosamente associados ao badalar dos sinos na belíssima composição de
Tchaikovsky, a Abertura de 1812. Na capital, Brasília, excetuando-se o troar,
ao vivo, numa única encenação daquela ópera na Esplanada, em comemoração ao Dia
da Pátria, os canhões efetuam, frequentemente, a famosa salva de 21 tiros dando
boas vindas aos dignitários estrangeiros nas visitas de Chefes de Estado. Essas
tradicionais cerimônias protocolares, realizadas diante da rampa do Palácio do
Planalto, além de outras próprias das comemorações militares, são executadas
pelo Batalhão Caiena, da Guarda Presidencial, com seus reluzentes uniformes de
gala ainda dos tempos do Império.
Mas,
alegria diferente foi poder tocar e sentir os canhões de Napoleão com os quais
lutou no rigoroso inverno russo. Por coincidência minha visita se dera
justamente no período de inverno e a temperatura estava abaixo de zero grau.
Aqueles canhões das longas batalhas napoleônicas, forjados em liga de ferro e
bronze, estavam ali enfileirados, gelados e tendo ao fundo a bandeira nacional “Bleu, blanc et rouge”, na Place des
Invalides. Aquele cenário, com todos esses elementos incluindo o ar gelado, me
fez “embarcar” na célebre ópera de 1812, de Tchaikovsky, com a marcha da
Marselhesa e depois os acordes das marchas russas comemorando a derrota do
Imperador Napoleão, diante do tal “general inverno”, mais rigoroso que aquele
gelado dia de dezembro de 2013 na capital francesa. Foi emocionante repousar a
mão sobre o enorme e gelado canhão napoleônico e ao mesmo tempo desfilar na
mente os acordes daquela belíssima ópera associada ao badalar dos sinos de
minha cidade natal e também aos canhões do Batalhão Caiena em Brasília. Cenário perfeito para uma "viagem" no espaço e no tempo, de mais de dois séculos, pela milenar cidade de Paris, pelos campos gelados de São Petersburgo, a Praça dos Três Poderes, de Brasília e os sinos das igrejas da terra natal, tão presentes na memória.
Sinos...,
por quem eles dobram? Eles dobram por ti, respondeu Hemingway em seu famoso
romance imortalizado no cinema. Embora aquele autor fale muito da morte, da
perda de vidas e os sinos nos chamem à reflexão, há também o enaltecimento à
alegria da vida que as igrejas celebram em matrimônios, batizados e outras
festas da liturgia. O próprio ato de convocar os fiéis, por meio dos sinos, já
é uma celebração à vida, pois nenhum ser humano é uma ilha e congregar é
preciso e faz bem à alma. Poucos se dão conta que os sinos dobram para eles que
o escutam. Sei muito bem disso, pois entre nós que o tocávamos, a expressão era
simplesmente: “vamos chamar o povo para a missa”. Quem nunca ouviu um sino
repicar, ou não se recorda deles a soarem como que convidando-nos à reflexão,
na alegria e na tristeza? E os acordes de Gounod, da belíssima Ave-Maria, ecoados
do alto da torre da igreja? E as salvas
de canhões, entremeadas com efusivos repiques de sinos, imortalizados por Tchaikovsky
em sua majestosa ópera? Ah... quem é que hoje, ao ouvi-los em qualquer lugar do
mundo, não “viaja” de volta ao doce passado dos campanários das igrejas com
seus sinos, relógios e alto-falantes?
Doces
reminiscências..., os sinos e as sirenes da indústria de Lavras, os acordes de
Gounod e os canhões do Batalhão Caiena, os de Napoleão rugindo ao lado dos
sinos em belíssima sinfonia. Sabemos, sim, para quem dobram os sinos. Eles
dobram por ti para que te lembres deles para sempre em doces recordações.
Brasília,
1º de agosto de 2014
Paulo
das Lavras
Igreja Matriz de Lavras e sua imponente torre.
Década de
1960- rua calçada
com paralelepípedo.
Foto: arquivos de Renato Libeck
Igreja matriz de
Lavras.
Foto: do autor- 2015
Os relógios, alto
falantes e o campanário dos sinos
Foto: Cristiano
Assis
Belíssima foto, de autoria de Catarina Júlia, com o relógio e alto-falantes em
detalhe.
A esquina de Barbosa Lima com Francisco Sales, a menos
de 100 metros da Igreja Matriz. A Ave Maria de Gunod me
despertava às 06:00 horas, com elevados decibéis e os
sinos
nos anunciavam
as festas e crimônias de luto.
Foto do autor - 2015
Igrejinha de Santa
Efigênia – 8º BPM – Lavras, onde o menino
gostava de tocar o
sino nas manhãs de domingo.
Foto dos arquivos
de Renato Libeck
Cia Fabril Mineira
– fábrica de tecidos em Lavras. Sirenes que
ecoavam às 6:30h, chamando a todos para o
trabalho
Foto: arquivos de
Renato Libeck
O bonde, que
partia em sua primeira viagem, ao som das sirenes
da Fábrica de Tecidos, levando
operários e
estudantes para o início das jornadas às 7:00 h em ponto.
Foto: arquivos de
Renato Libeck
Cúpula de 67
metros de altura onde está pendurado o
Pêndulo de
Foucault. Museu Des Arts et Métiers,
Igreja
Saint Martin des
Champs – Paris, dezembro de 2013
Foto do autor
Pêndulo derrubando
a sequencia de pinos. Museu des Arts et Métiers
Foto: Musée
des Arts et Métiers
Igreja de Saint
Martin, onde está o museu do Pêndulo de Foucault,
Experiência de
1851 que comprovou o movimento de rotação da terra.
Paris- dezembro de
2013. Foto
do autor
Canhões do
Batalhão Caiena - Guarda Presidencial. Salva de
21 tiros nas
solenidades de recepção a Chefes de Estado
Foto: PR
O troar assustador
em dia de festa no QG do Exército, em Brasília
Foto: SecomEx
Os canhões de
Napoleão, Praça des Invalides- Paris. Gelados, a menos
de zero grau, como
a relembrar-me a derrota no inverno russo de 1812. Não
há como não
imaginar e “ouvir”, ali mesmo e emocionar-se com a célebre ópera de 1812,
de Tchaikovsky,
com a marcha da Marselhesa e
depois os acordes
das marchas russas comemorando a derrota do
Imperador
Napoleão, diante do tal “general inverno”, mais rigoroso que
aquele gelado dia de dezembro de 2013
na capital francesa.
A lembrança dos acordes finais da ópera
com a sinfonia dos sinos pipocando em regozijo pela vitória russa, e minha mão
repousando sobre aquele canhão gelado, despertou lágrimas de emoção, pois
também "ouvi e vi", ali na Praça des Invalides- Paris, naquele exato
momento de emoções, os repiques dos sinos de minha distante cidade
natal.
Paris, 13/12/2013. Foto do autor
E ouça o repicar dos sinos da Catedral de
Moscou, ao final, e veja a beleza da ópera de Tchaikowsky: https://www.youtube.com/watch?v=ZrsYD46W1U0
Nenhum comentário:
Postar um comentário