Lavras, cidade gestada em 1712 pelos sonhos de Francisco
Bueno da Fonseca, um revoltoso contra os atos da Coroa portuguesa, já contava
com cerca de 1000 habitantes em 1720, ano oficial de sua fundação. Passado o
ciclo das lavras de ouro o município firmou-se na exploração agropecuária e
partir do final do século XIX, graças à iniciativa de missionários norte-americanos,
iniciou uma nova fase de progresso calcada nos alicerces da educação. Em meados
do século XX, mais precisamente no ano de 1941,segundo o historiador Németh
Torres, Lavras ganhou o lema de “Terra dos Ipês e das Escolas”. O autor desse
lema, Jorge Duarte, exalta em poema as semelhanças entre as escolas e os ipês que
passam o ano inteiro despercebidos se preparando para as magníficas floradas de
coloridos deslumbrantes no mês de agosto. Verdadeira festa multicolorida
admirada, fotografada e cantada por todos da cidade. Também as escolas, segundo aquele autor, à
semelhança dos ipês, passam o ano inteiro preparando seus alunos, silenciosa e
anonimamente, sem despertar a atenção para sua grande obra. No final do ano,
então, começam as festas de formatura e a cidade se engalana para celebrar as
vitórias e só então aparece o resultado de um labor fecundo. “Os ipês florescem
em agosto. As escolas florescem em novembro”, escreveu Jorge Duarte em seu
poema de louvor aos mestres e à cidade.
Com esse preâmbulo sobre o ambiente escolar de Lavras
iniciamos uma história que se insere no contexto educacional da cidade onde
passamos a juventude às voltas com os livros e, naturalmente, cercados de belas
garotas. Naquele início dos anos 60 do século passado a cidade já contava com
40.000 habitantes, atingindo a surpreendente marca de 20.000 estudantes, a
metade da população, como a justificar seu lema cunhado 20 anos antes. Nesse contexto
estudantil ficou viva na memória da rapaziada uma famosa Kombi azul metálico perolizada.
Mas as reminiscências nem se referem tanto à novidade daquele bonito furgão
importado, admirado na cidade e no país, pois era um vistoso e inédito modelo
alemão, ano 1959, para nove passageiros e com muitas janelas. Além dessa
novidade o interesse maior recaia sobre as seis moças que, diariamente, eram
levadas e buscadas nos colégios da cidade naquele veículo. Não era uma Kombi-Escolar nos moldes de hoje.
Pertencia a um tradicional fazendeiro que era o próprio motorista a transportar
seus sete filhos, seis moças e um menino bem mais novo. Chegava, diariamente,
um pouco antes das sete horas da manhã nos colégios Gammon, Lourdes e Kemper.
Neste se concentrava a maior parte das filhas estudantes. À tarde, por volta
das 16 horas as recolhia na casa dos avós, situada na rua direita, quase em
frente ao Grupo Escolar Firmino Costa. Essa rotina durou de 1956 a 1966 quando
adquiriu, na cidade, uma casa para as moças e assim as viagens ficaram
reduzidas apenas aos fins de semana. Antes desse período as meninas mais velhas
foram internas do Colégio de Lourdes, no período de 1950 a 53. Chegaram a
residir com os avós por algum tempo até que o transporte diário começou com uma
Vanguard, de 1956 a 59 quando então foi substituída pela confortável e espaçosa
Kombi alemã.
Com casa na cidade para os filhos e redução das viagens o
pai daquela numerosa família em idade escolar pôde trabalhar mais
tranquilamente na sua bela e bem equipada fazenda na zona rural do Queixada. A
propriedade dista uns 10 km da cidade pela antiga e acidentada estrada
intermunicipal Lavras-Nepomuceno. A região se destaca pelo espinhaço de serras
com magníficas formações rochosas afloradas e esculpidas pelo vento. A fazenda
é banhada pelo ribeirão Água Limpa com várias cachoeiras, casa sede imponente,
moinho d´água para produção de fubá, energia elétrica própria gerada por
pequena usina hidrelétrica, instalações industriais para moagem de mandioca e
fabricação de polvilho e... naturalmente a tradicional exploração de gado de
leite. Não conheci antes a fazenda, embora o imaginário do menino por ali
passeasse sempre que avistava a famosa Kombi. Mas, alguns familiares relataram
que lá iam adquirir o especial polvilho de mandioca e sempre era motivo de
calorosa recepção por todos, especialmente os pais das moças. Uma delas
relatou, recentemente, que a fabricação do polvilho era uma diversão para a
família, pois havia a “guerra de polvilho nos cabelos” e para se protegerem do
pó branco amarravam panos na cabeça.
Mas, uma Kombi assim, repleta de belas moças passeando
pela cidade e pelas portas dos colégios não poderia passar despercebida pelos
rapazes. Ficou famosa, mas, havia um porém... o motorista era o próprio pai, de
cenho cerrado com espessas sobrancelhas e olhar nada convidativo para cima dos
“inocentes e despretensiosos” rapazes... Isto lhes causava certo receio que,
aliás, era o costume naqueles idos tempos de doce juventude em que os pais eram
considerados “as feras” que afugentavam os “gaviões”. Contentavam-se em vê-las
caminhando pelas ruas em direção à casa dos avós, ponto de concentração para a
viagem de retorno à fazenda, ou então na varanda daquela casa. Isso tudo longe
das vistas do Sr. Zé das moças da Kombi, apelido carinhoso que os rapazes logo
lhe arranjaram, ainda que à revelia. Assim, outra diversão preferida era pegar
o bonde e de pé, no estribo, olhar para aquela varanda bem ali, defronte aos
trilhos. E o melhor era que o “trocador” do bonde, o saudoso Tarzan, jovem de
físico sarado, paquerava uma daquelas lindas moças e sabedor que os rapazes
estavam naquele veiculo com o mesmo interesse, cooperava e nem cobrava a
passagem. Alegria geral, sorrisos para todos os lados e só faltava ele mandar o
motorneiro reverter o percurso, ali na esquina do Firmino Costa e passar 500
vezes mais em frente à casa, logo acima, o alvo preferido daquela rapaziada.
Pedidos para isso não faltavam e até o sisudo motorneiro, Cirilo, achava graça e
com gostosa cumplicidade tocava a sineta de alerta do bonde, como que avisando
às meninas que o comboio dos rapazes estava passando...
Infelizmente o amigo Tarzan não está mais entre nós e não
pudemos descobrir se suas incursões renderam bons frutos. Talvez a sua musa
preferida nem soubesse da admiração que ele nutria, tanto quanto as demais em
relação aos outros rapazes. Muitos sessentões se lembrarão daquelas moças, educadas,
sorridentes e bonitas. Uma delas foi eleita Rainha da Exposição Agropecuária.
Desfilou pelas ruas da cidade, sobre uma carreta de um trator, como era de
costume. Todos a aplaudiam e admiravam sua beleza até o momento em que o
desastrado tratorista que a conduzia, numa arrancada brusca, a atirou ao chão na
movimentada esquina Záckia/Mazza Hotel. Todos acorreram em socorro da bela
rainha, mas felizmente nada de grave acontecera. Aboletou-se novamente na carreta
ornamentada e o condutor, consternado pela sua barbeiragem, prosseguiu o
desfile até o recinto da Exposição a dois quarteirões dali. Ainda recentemente aquele
tratorista guardava na memória a imagem de reprovação de todos que presenciaram
o acidente por ele causado. Somente
agora, passados quase 50 anos, ele encontrou nas redes sociais a rainha em questão
e ela confirmou que aquilo não tivera tanta importância e deu boas gargalhadas.
O Menino das Lavras, que era o então “barbeiro” que a conduzia no trator da
Esal/Ufla, respirou aliviado e também caiu na gargalhada, não sem antes imaginar
que aquela barbeiragem talvez tivesse sido produto de nervosismo decorrente da
honra de conduzir a rainha aplaudida pelos súditos que apinhavam as ruas.
Em
recente e saudosa visita que o menino fez à cidade natal, descobriu que o medo
da rapaziada em se aproximar da Kombi era tanto que somente dois destemidos
policiais tiveram coragem de chegar e enfrentar o seríssimo pai das moças. Deve
ser lenda, pois o autor do relato, um tanto fantasioso não parecia levar a
sério as próprias palavras. Dizia que um daqueles policiais, em missão de
patrulha nas rodovias federais, interceptou a famosa Kombi, sequestrou-a e
levou uma das moças e, melhor ainda, vive com as duas até hoje, a moça e a
Kombi. Lógico que, mesmo depois de tanto tempo, o menino não acreditou nessa
história. Mas, o certo é que ele foi levado ao patrulheiro rodoviário federal, velho
amigo de infância, e surpreendentemente lá estavam os três numa linda casa em
um bairro da cidade. Os três? Sim, os três, o patrulheiro federal, a moça e
pasmem..., a velha Kombi alemã, ambas “sequestradas” pelo corajoso policial a
uns 50 anos atrás. Surpresas das melhores e ao repetir a fantasiosa história
aos supostos protagonistas, caímos na gargalhada e nos pusemos a relembrar os
velhos e doces tempos da infância e juventude com direito a fotografias da família,
da famosa Kombi ainda em uso e bem conservada, terminando com uma vista à
fazenda, porto de partida e retorno daquela histórica Kombi.
À
parte as reminiscências dos arroubos juvenis e das bonitas garotas que
transitavam naquele veículo e ainda as histórias fantasiosas de sequestros,
prevalecem hoje as lembranças da saga daquele admirável senhor, austero,
cônscio de suas responsabilidades em educar e encaminhar os filhos, levando-os
diariamente à escola. Admirável esforço, trabalho anônimo e tal qual no poema
de Jorge Duarte, ele cumpriu com determinação, silenciosa e anonimamente sua
tarefa na construção de um futuro coerente com seus valores e costumes da terra
das escolas. Verdadeiro professor que, mesmo na simplicidade da vida rural,
soube honrosamente compreender o valor da educação e conseguiu diplomar todos
os filhos. Muitos deles se tornaram professores, educadores, constituíram novas
famílias com prole espalhada por várias partes de nosso país. Um exemplo de
cidadania e honradez. Foi um verdadeiro professor, invisível a seu tempo, mas
que hoje assim o reconhecemos. Assim foi o Sr. José Azarias de Carvalho, este é
seu nome. E assim como os ipês e as escolas florescem em agosto e novembro
respectivamente, a obra desse professor invisível floresceu a vida inteira e
produziu bons frutos.
Ao
terminar a visita de resgate desse saudoso passado de 50 anos, o menino
contemplou a Kombi pela última vez. Surpreendentemente em vez de “ver” ali
aquelas belas moças, vislumbrou apenas o condutor. Seu olhar se concentrou na
porta e cabine do motorista e, partir daquele instante desfilaram apenas as
lembranças daquele verdadeiro professor invisível, mas bem presente em seu
imaginário, ali e agora, sentado naquela cabine, cumprindo sua missão. O
vislumbrei ali, ao volante, com o mesmo semblante sério e num gesto de saudosa
despedida fotografei a sua “sala de aula”, aquela cabine com o volante e espartano
painel de instrumentos que por tanto tempo manejara em nobre missão.
Nossas
homenagens a quem soube, mesmo à custa de extremo sacrifício, honrar a tradição
de 300 anos de nossa cidade, reconhecida no país e no exterior como terra dos
ipês, das escolas e da cultura. Escolas e cultura que florescem há 130 anos,
quando aqui chegou, em 27 de dezembro de 1893, o missionário norte-americano
Samuel Rhea Gammon e que ao desembarcar escreveu: “... meu coração está cada
vez mais cheio de interesse por esta terra e por esta obra (o colégio
evangélico)”. Seu trabalho, visitando e convencendo as famílias a matricularem
seus filhos na escola, floresceu e ganhou tradição. Assim é Lavras e sua gente,
a terra dos ipês e das escolas. O Sr. José Azarias Carvalho foi um exemplo,
cumpriu essa tradição com muita responsabilidade e amor. Um orgulho para todos
nós. Parabéns à família.
Brasília, 04 de julho
de 2013
Paulo das Lavras
A Terra dos Ipês e das Escolas com seu deslumbrante ipê amarelo e...
A imponente Escola Carlota Kemper , em estilo virginiano (EUA), fundada em Lavras em 1893. Mais de um século de tradição na formação de jovens
O bonde levando o menino das Lavras e seu amigo Tarzan, fotografado em frente à casa dos avós das meninas
A imponente casa sede da Fazenda Queixada, residência da família Carvalho
A famosa Kombi alemã, importada em 1959, em foto atual sem a pintura original
As passageiras do "Sr. Zé das Moças da Kombi" em foto de 1970, na fazenda
O Menino das Lavras ladeado pelo "destemido" patrulheiro, Thadeu, que "sequestrou" a Kombi e a garota Geisa, para sempre.
O saudoso homenageado, Sr José Azarias Carvalho ao lado da esposa Clara Pereira da Silva. Olhar firme, cenho marcante, autoridade logo reconhecida e respeitada pelos rapazes
A "sala de aula" que o Sr. José Azarias,verdadeiro professor invisível, utilizou para dar "Educação" aos filhos. Tarefa diária, sem trégua, por longos anos
O bonde ficava lotado como nessa foto e todos querendo ver as "minas"
Foto: arquivos de Renato Libeck