Em
fevereiro de 1953 o menino de sete anos (completaria oito dali exatos dois
meses) foi matriculado no então Grupo Escolar Firmino Costa, tradicional
educandário da cidade de Lavras. Dona Anita Carvalho foi minha primeira
professora. Um doce de professora que se encarregou de alfabetizar os meninos
que nunca antes haviam pegado num lápis. Hoje, as crianças já são matriculadas
em creches, passando pelo maternal e jardim da infância, chegando às primeiras
séries do ensino fundamental com bastante familiaridade com o lápis e o
alfabeto. Mas, naquele tempo, não havia isso e o chamado primeiro ano do grupo
escolar era mesmo onde e quando as crianças iriam pegar no lápis pela primeira
vez. E que habilidade e sensibilidade aquela professora, D. Anita, tinha para
lidar com os novatos em tudo, inclusive na disciplina em sala de aula por
longas quatro horas.
Me
lembro que fomos alfabetizados no livro de Lili, cuja primeira lição, num
bonito cartaz dependurado acima do quadro negro e era assim:
Ah
que saudade! Ela apontou para a gravura e perguntou: alguém sabe por que ela
está com as mãos sobre a barriguinha? Ninguém soube responder. Na verdade, ela
estava testando se algum aluno já saberia ler, mas ela mesma teve que
responder: é porque ela comeu muito doce. Em uma semana aprendemos o bê-a-bá e
pudemos ler a primeira historinha escrita para crianças em alfabetização. Dona
Anita tinha uma didática fantástica, cuidava muito da pronúncia correta das
palavras, por exemplo, o “de”, era dito como “dê” e não “di”, como era
comumente pronunciado por todos. E ela caprichava na pronúncia e exigia o mesmo
das crianças... “dê”... Quando terminava
o período daquela lição e era hora de se trocar o cartaz para a próxima e então
escolhia dois alunos para levar à biblioteca o cartaz antigo e trazer o novo.
Era uma festa. Um menino e uma menina chegavam à sala, cada um segurando a
ponta do cartaz enrolado e entregava à professora. Curiosidade total da criançada,
Como seria? Qual a ilustração que viria no cabeçalho do cartaz? E este menino foi logo escolhido para a viagem
do segundo cartaz. Dona Cate, a encarregada da secretaria/biblioteca procurou o
novo cartaz, desenrolou-o, conferiu..., ali estava a segunda lição: O piano de
Lili... Ah, que lindo o cartaz, Lili ao
piano, com sua cachorrinha em cima dele, ouvindo-a tocar. De imediato o menino
se apaixonou pelo piano, cujos acordes apreciava, não somente da Ave Maria de
Gounod/Bach que os alto-falantes da igreja Matriz tocavam três vezes ao dia,
mas também pelo próprio do grupo escolar que sempre acompanhava os ensaios do
hino nacional. E aquele piano de abertura da Ave Maria soava exatamente às
12:00h, todos os dias, quando estávamos em formação no pátio, para cantar o
hino nacional e em seguida adentrar a sala de aula. Tal qual a cachorrinha Suzete, ali em cima do
piano, o menino tinha uma fascinação por esse instrumento, tanto assim que no
internato do seminário, aos 12 anos, em sua hora de recreio procurava a sala de
música para ouvir os colegas veteranos tocarem o Largo, de Haendel e ainda mais
tarde, no jardim de Lavras, sentava-se no banco em frente ao sobrado do Capitão
Evaristo para ouvir os acordes do famoso piano francês Pleyel, tocado constantemente
pela professora Cecília Azevedo ensinando suas alunas. Ainda hoje, onde vejo um
piano, peço alguém para tocar... e viajo no tempo da doce infância e da
juventude passadas na culta Lavras do Funil.
Mas,
voltando ao ritual das lições de Lili, chegávamos à sala de aula, com o cartaz
enrolado e Dona Anita interrompia a aula
e solenemente o desenrolava e o colocava,
pelo barbante, na ponta da varinha de
apontar a matéria no quadro negro e o dependurava no alto, acima do quadro
negro, onde permanecia por todo o tempo necessário. Já tínhamos sido
alfabetizados na primeira lição e por isso conseguíamos, ainda que com certa
dificuldade, ler aquela segunda lição:
Lili em seu piano.
Lili toca piano
Lili toca
assim dó, ré, mi, fá...
Suzete é
a cachorrinha.
Suzete
ouve Lili tocar.
“Toca
Lili, toca dó ré mi, fá...
Não
sei por que, mas, hoje, ao olhar os netos com seus notebooks estudando as
lições ou pesquisando na internet, especialmente nesses dias de quarentena em
que a educação tem migrado para o sistema de
EAD- Educação a Distância, bateu-me uma saudade danada daquela querida
Escola onde aprendi a ler e gostar de ler. Lembrei-me de uma visita que ali
fiz, em 2016, quando a Escola celebrava seu aniversário de 109 anos e eu disse, ao microfone,
às crianças que não me sentia envergonhado por ter sido flagrado com lágrimas
nos olhos aos 71 anos de idade, pois aos 7 eu também chorara ao ser ali deixado
pela primeira vez, naquele imenso pátio, em meio a centenas de crianças, a
maioria desconhecida. Agora sei, porque
naquele dia não contive as lágrimas ali, diante de mais de 200 alunos perfilados
no mesmo pátio onde eu corria, brincava de pique e jogava bolinha de gude, que
à época chamávamos de bola de crique. Com certeza, a semente, chamada Amor, que
ali plantaram no coração do menino, ainda está viva até hoje e não importa a
minha idade de mais de 70 anos, pois a alegria registrada, marcada, armazenada
nos escaninhos da alma é eterna.
Obrigado
à Escola Estadual Firmino Costa, obrigado professoras Anita Carvalho e
Margarida Pedrotti Massimo, diretora Neli Grego, dona Kátia, secretária e
merendeira e a todos que nos marcaram para sempre, ali nesse mesmo lugar onde
ainda se encontra até hoje. E para matar as saudades passei por ali exata e
coincidentemente no dia de seu aniversário. A Escola estava em festa, e ao
ouvir o Hino Nacional, cantado pelas crianças, atravessei a rua e para lá me
dirigi, correndo, sem ser convidado, por puro instinto e adentrei aquele
recinto tão caro à minha memória afetiva. Só alegria! Assisti a execução do
hino e hasteamento da Bandeira. Fiquei de longe, tirando algumas fotos daquele
pátio que tanto frequentei em 1953 e 54 (foto abaixo). Ali,
mesmo distante do palco, a Diretora Valéria Novaes do outro lado me avistou,
correu ao meu encontro e literalmente arrastou-me para o palco. Passou-me o
microfone e ordenou que falasse para as crianças. Emoção demais, lágrimas
incontidas ao ver aquelas crianças ali perfiladas diante do Pavilhão Nacional e
relembrar a minha infância de tanto tempo atrás.
Lavras
deve muito a todos os que se dedicaram à essa Escola e aos que hoje
cuidam para manter os ideais de seu fundador. É Patrimônio de Lavras. Sou aquilo que me moldaram, do berço às
primeiras letras daqueles anos de 1953/54 e à educação completa, inclusive
profissional, nessa Terra dos Ipês e das Escolas.
Obrigado,
Lavras. Obrigado à diretora, Prof.ª Valéria Novaes, obrigado às atuais professoras por
valorizarem a Educação e pela afetuosa acolhida a este ex-aluno que pôde
testemunhar o valor da semente do amor que todos vocês Educadores semearam e
semeiam a cada dia.
Brasília-DF,
29 de junho de 2020
Paulo
das Lavras
Que maravilha!!!Arquivei!!!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirParabéns, professor! Motivou-me a visitar as escolas que frequentei em Ilhéus e Itabuna-BA. A boa leitura é assim, desperta reflexões, cria um clima, anima!
ResponderExcluirUm abraço para o Dinho e o Ygor. obrigado
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