Crônica de um menino mineiro, das Lavras do Funil, dependente atávico da cultura, ciência e tecnologia da pauliceia. Escrita a bordo o Boeing 737-300 PP-VOX (VARIG), decolando de Guarulhos rumo a Brasília em 06/12/96. Neste ano São Paulo comemorou 442 anos. Parabéns para os paulistas e em especial para duas paulistinhas, gêmeas, minhas filhas, que hoje moram no planalto
Minas Gerais e sua gente estão ligadas a São Paulo não
apenas pela extensa linha de fronteira ou pela rodovia BR-381, que une as duas
capitais, mas sobretudo pela herança cultural e econômica. Foram os
bandeirantes Fernão Dias Paes Leme, Diogo de Fonseca, Borba Gato e outros
tantos pioneiros que iniciaram a verdadeira colonização dos sertões das Gerais.
Embrenhando por rios e florestas, vencendo as íngremes montanhas, em busca do
metal reluzente e outras pedras preciosas, plantaram a cada 20 ou 30 km um novo
povoado. Essa era a distância máxima que se conseguia vencer em um dia, a pé e
com a tropa de carga de víveres, armas, sementes e ferramentas. Foi assim que
surgiu a progressista cidade de Lavras, hoje verdadeiro polo educacional. O
vilarejo nasceu como “Arraial dos Campos de Sant´Anna das Lavras do Funil”, no início
do século XVIII (1712/20), rico em veios e lavras de ouro, quase às margens do
Rio Grande, a 380 km do Planalto de Piratininga, berço dos bandeirantes. Foi
ali, em Lavras, que meu penta avô, Manoel da Costa Vale, imigrante português,
nascido na região da cidade do Porto, se estabeleceu em 1750, vindo de Guaratinguetá-SP, aonde
chegou por volta de 1720. Passado o ciclo do ouro, iniciou-se, no século XIX, o
ciclo do café. Mais uma vez a presença dos paulistas foi marcante na cultura e
na economia das Gerais. Os coronéis e os barões do café do Vale do Paraíba imigraram
para Minas e lá plantaram raízes culturais e do café que lhe garantiram
prosperidade.
Nas Lavras, fundada e colonizada pelos paulistas,
nasceu o menino que foi criado à sombra dos cafezais, cavalgando mangalargas
marchadores pelas fazendas de café e leite, tradição herdada dos desbravadores
e indutores do desenvolvimento daquelas região do sul de Minas. O menino cresceu
ouvindo “causos” e estórias sobre a cidade grande de São Paulo, para onde se
dirigiam os parentes fazendeiros para vender café, queijo, manteiga e comprar
“novidades”, principalmente automóveis (Buick, Mercury) e caminhonetes (GMC,
Chevrolet, Ford) e até mesmo as primeiras televisões no final da década de 1950,
quando foram lançadas.
Terminado o ciclo do café, os
paulistas invadiram o sul de Minas com suas possantes rádios emissoras que, nas
décadas de 1950 e 60, faziam muito sucesso com os programas de música caipira
(hoje, sofisticadamente chamadas de “Country Music”) das rádios Bandeirantes,
Tupi e Record (esta se situava na Rua das Palmeiras, no centro da cidade,
conforme anúncio para atrair o público para seu auditório). E tome lavagem
cerebral. Os paulistas vendiam de tudo pelo rádio, como as pílulas De Lussen,
Passa-já, Emulsão de Scott, cursos à distância do Instituto Universal
Brasileiro e, naturalmente, os encantos da cidade grande, a Eldorado, o sonho de
toda a gente interiorana.
Em seguida surgiu a TV, e quem
chegou primeiro? Em Lavras, foi a TV Tupi-canal 4, de São Paulo, em 1959. Havia
uma única tevê, instalada na loja do Sr. Haical Haddad, em frente à majestosa
igreja Matriz. Depois veio a TV Record com a Jovem Guarda de Erasmo e Roberto
Carlos, Wanderléa, Roni Von, Roni Cord, que onda! Que festa de arromba para as
cabecinhas feitas nas ondas do iê iê iê que vinham em preto e branco nas tardes
de domingo diretamente dos auditórios paulistanos.
Não havia como fugir da influência e
fascínio de São Paulo. Se na infância os adultos povoavam as cabecinhas com os
“causos” e estórias da metrópole, logo em seguida chegaram as rádios com seus
programas interioranos e, por último, na adolescência do menino das Lavras, os
“tremendões” da TV Record. No way...
não tinha jeito...., São Paulo dominava completamente. Sua pujança econômica,
com a Av. Paulista (a nossa Wall Street) sediando as grandes corporações
empresariais, bancárias e industriais, o comércio, o MASP e o domínio cultural
com suas apresentações de espetáculos. No way...
Não tinha jeito, mesmo!
Minha primeira visita a São Paulo
foi no início da década de 1960, em trânsito para Londrina-PR. Aproveitei o
pouco tempo da “escala técnica” aventurando um passeio, a pé, até o Vale do
Anhangabaú, Viaduto do Chá, Av. São João
e só, mais não ousei. Gostei e prometi voltar. Depois, em 1963, por indicação
de um respeitado líder religioso de Lavras, Pe. Miguel Moretti, passei uma
semana num cursilho da C. J. C. - Comunidade de Jovens Cristãos, no Convento
dos Freis Dominicanos, da Rua Cayubi, bairro das Perdizes. Nesse endereço, poucos
anos depois, mais precisamente em novembro de 1969, os órgãos de repressão
metralharam o guerrilheiro Carlos Marighela, um dos principais organizadores da
resistência contra o regime militar. A hospedagem do menino, em sua segunda
viagem, foi no CRUSP- Centro Residencial da USP, recém-inaugurado no Campus do
Butantã, às margens do Tietê. Embora tenha apreciado e aprendido bastante nesse
estágio de uma semana, a visita mais marcante foi quando o menino foi premiado
por ter sido o melhor aluno da disciplina de Solos e Adubação, do curso de
Agronomia da ESAL/UFLA. A premiação foi muito proveitosa, uma bolsa-estágio na
Companhia Paulista de Adubos-COPAS, a maior e mais importante produtora de
insumos agrícolas. Foram 30 dias de visitas à unidade industrial de
fertilizantes e propriedades rurais de produção hortifrutigranjeira no cinturão
verde da capital em Mogi das Cruzes, Suzano, Osasco, Taboão da Serra, e outros.
Chamou a atenção do então jovem acadêmico, a diversidade de cultivos em
reduzidas áreas de terras e o alto grau de tecnologia utilizada pelos
paulistas, geralmente descendentes de japoneses. Para um mineiro acostumado às
monoculturas de café, milho ou gado de leite em grandes fazendas, era um
“espanto” se conseguir tanto, em tão pequenas áreas, o suficiente bastante para
permitir a aquisição de carrões e mais, viagens de toda a família para visitar
os parentes na longínqua terra do sol nascente a 20.000 km.
Ainda nesse estágio visitamos também
grandes fazendas de café, milho, cana e citros na região de Ribeirão Preto,
Bebedouro e Colina, sempre acompanhados por técnicos experientes. Assim o menino enriqueceu seus conhecimentos e
habilidades técnicas, pois nunca vira antes tal escala de produção, quer na
indústria ou na agricultura propriamente dita. Bem, mas nem só as técnicas
agronômicas encantaram o menino. Levou de volta para a casa a paixão gostosa de
uma meiga e jovem adolescente que, ainda hoje, a tem em boa reminiscência, pois
morava no bairro de Santo Amaro, próximo ao autódromo de Interlagos onde se
hospedara. Fabíola, era seu nome, mas o destino quis que ela partisse para
sempre, prematuramente.
No período de faculdade, nas Lavras
do Funil, houve excursões técnicas pelo estado de São Paulo, no Instituto
Butantã, onde se produziam vacinas, passando pelo Instituto Agronômico de
Campinas-IAC, ESALQ-USP-Piracicaba, Ibec Research Institute - IRI/Matão com pesquisas
de gado de corte e Fazenda Canchim/São Carlos. Tomar contato com os expoentes
da pesquisa científica e os avanços da tecnologia agrícola naquelas
instituições foi, sem dúvida alguma, um acréscimo considerável à sua bagagem
técnico-científica. Embora o curso superior de Agronomia se localizasse em
Minas, num centro de excelência, recebia, ainda, muita influência paulista,
quer no treinamento pós-graduado dos professores ou mesmo através da
bibliografia técnica, quase toda produzida pela ESALQ-USP e IAC-Campinas. Mas,
ainda na faculdade, o garoto voltou a São Paulo para, em nome da turma de
formandos, contratar uma orquestra para abrilhantar o baile de formatura. O
chique naquela época, em Minas, era buscar orquestras famosas em São Paulo. Lá
se foi o menino, “o jovem empresário de eventos”, a serviço dos colegas de
faculdade. Contratamos uma boa orquestra, o conjunto Super Som T.A. que agradou
bastante no baile de formatura da ESAL/UFLA, naquele ano de 1967. E assim se
fechou o ciclo. Anos e anos de aculturação paulista através dos ancestrais, da
família, rádio, TV e finalmente da academia com os estágios técnicos. Daí, a
nota em epígrafe, referindo-se ao autor. Mas, ainda não é tudo.
Recém-formado, onde trabalhar? Tendo
sido selecionado por uma grande corporação multinacional do ramo de
fertilizantes, com sede no cruzamento das Avenidas Ipiranga e São João, para
trabalhar em marketing/vendas/extensão rural, recebeu, também, convite e
indicação para trabalhar no ramo de planejamento agroflorestal e paisagismo, em
outro local, na capital mineira, optou, por questão de perfil profissional,
para as atividades de planejamento. Mas, mesmo nesse emprego nas Gerais, não
tardou muito e, logo em seguida, aterrizava em Congonhas a bordo do Super
Viscount da VASP, de prefixo PP-SRD, para executar sua primeira tarefa
profissional na capital paulista. Inenarrável foi a emoção daquele menino dos
rincões das alterosas contemplando, do alto, toda a grandiosidade e majestade
da metrópole paulista. Ao retornar, no dia seguinte, e contemplando novamente
da janela do avião aquele cenário grandioso do Tietê serpenteando o vale e o
aglomerado de arranha-céus, sentiu uma ponta de orgulho profissional e pessoal,
por ter obtido sucesso na missão que ali acabara de desempenhar. Tudo que fez,
viveu e aprendeu tinha muito a ver com isso e agora, deixara ali o primeiro
resultado, o primeiro produto de anos e anos de sonhos e dedicação aos estudos.
Sentiu-se realizado. Mas, a vida profissional do menino que se tornara
engenheiro estava apenas começando. Se por um lado era imensamente grato a seus
pais que lhe propiciaram os estudos e aos mestres que lhe ensinaram, não podia
deixar de ser grato aquela metrópole, aos paulistas, pelos laços atávicos e
pela cultura técnico-científica ali adquirida ao longo de toda sua vida. E tudo
isso passou-lhe pela cabeça ao sobrevoar a cidade numa doce e grata despedida.
Na década de 1970, já como professor
da Universidade Federal de Lavras, o menino-engenheiro empreendeu muitas
viagens a São Paulo para equipar laboratórios, bibliotecas ou mesmo para
visitas de intercâmbio na USP. Mais tarde frequentou o curso de pós-graduação
de Engenharia Hidráulica e Saneamento, na Escola de Engenharia de São Carlos,
da USP, com várias incursões nas estações de tratamento de águas e efluentes da
cidade de São Paulo, no bairro de Pinheiros. De São Carlos trouxe, de volta à
Minas, além do diploma de pós-graduação da USP, duas filhas que nasceram no
mesmo dia, de um frio inverno que teve a noite mais longa do ano, segundo a
manchete do jornal Folha de São Paulo, recortada e guardada como lembrança do
maior presente que São Paulo lhe dera.
Os laços com São Paulo não são
apenas atávicos, culturais e científicos. Há sempre um enorme prazer em ali
chegar, seja num voo panorâmico de helicóptero ou nos mais de 300 pousos e
decolagens nos aeroportos de Guarulhos e de Congonhas para missões oficiais nas
áreas da educação superior, pelo MEC e também na supervisão do exercício da
profissão da Engenharia, Arquitetura e Agronomia, como Conselheiro Federal do
CONFEA A passeio o prazer é igual e para quem pense o contrário, São Paulo é
dos melhores lugares para uma semana de férias, pois ali estão os maiores
museus culturais, casas de espetáculos, shoppings e exposições nacionais e
internacionais. Em qualquer época do ano sempre haverá atrações para todos os
gostos. No trabalho, pelas atávicas raízes culturais, o menino sente um gosto
diferente, nunca uma obrigação, sempre um prazer renovado estar no meio da
gente laboriosa, progressista e pioneira de quase 450 anos de história.
São Paulo/Brasília, 06 de dezembro de 1996
Paulo
das Lavras
(publicada em 29/04/2023)