Paulo Roberto da Silva, natural de Lavras-MG (1945). Graduado em Agronomia pela UFLA e pós-graduado em Engenharia Hidráulica e Ambiental pela USP/São Carlos e Avaliação da Educação Superior/UNESCO-UNB. Professor da Universidade Federal de Lavras (1969/75), área de Construções e Meio Ambiente e Pró-reitor de Pós-Graduação. Professor de Legislação e Ética Profissional do Sistema CONFEA/CREA na UPIS-DF (2000 - 2011), Trabalhou no Ministério da Educação - 1975 a 2008, na direção e execução de programas internacionais nos EUA e França. No MEC foi ainda diretor de Avaliação e Expansão da Educação Superior e coordenador da reestruturação da formação nas Engenharias. Foi conselheiro do CREA-MG e do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - CONFEA, onde também atuou como consultor na reforma das Engenharias no sistema profissional, até 2011. Consultor de Avaliação da Educação Superior e ultimamente dedica-se, em tempo integral, aos estudos da História do Brasil e em especial da terra natal, fundada em 1720, quando ficou conhecida por Arraial dos Campos de Sant`Anna das Lavras do Funil do Rio Grande. Gosto de escrever crônicas e contos, quase sempre publicados no blog: http://contosdaslavras.blogspot.com/
Capa: Rogério Salgado
Foto: sede de fazenda da Família Salles – bateção de feijão - 1940 – Lavras MG.
Arquivos Família Salles
A foto, de janeiro de 1940, retrata a operação de
bateção do feijão no terreiro de secagem (beneficiamento que consiste em bater
as vagens secas do feijão com uma vara flexível de modo a separar casca e grãos).
O fazendeiro Anísio Abreu lidera a turma, estando à
frente (o mais alto, da esquerda). Juntos,
quatro “camaradas”, sendo três negros, que participam da tarefa. O mais alto deles é o negro Calixto, líder e
chefe da turma de camaradas da fazenda.
Sentados na calçada os filhos menores e na janela da direita, da sala de jantar, estão a matriarca da família, Lucinda Augusta Salles e as filhas Nadir (1927-59) e Elza (1929-2017).
O casarão de 18 janelas, vários quartos, sendo um
reservado especialmente para o padre capelão que ia celebrar missas na capela
da fazenda, foi construído e inaugurado pelo proprietário, em estilo colonial
com mestre de obras e artífices portugueses. Lamentavelmente foi abandonada e
ruiu completamente em 2015, exatos 100 anos após sua inauguração.
Nessa casa nasceram os filhos do casal e muitos netos, dentre eles os irmãos Vilma Resende (1944) Paulo (1954-2021) e Pedro Resende. Em 1942 e 43 ali também nasceram, respectivamente, Lucinda e Maria Consuelo, irmãs deste autor e ainda Magda Castro, em 1943.
Em fins de 1954 a fazenda foi vendida ao primo dos
Salles, Antônio Carnot de Pádua e foi anexada aos terrenos antes pertencentes
aos irmãos, Tonico de Pádua, Carnot e João Oscar de Pádua.
Agradecimentos
Agradecer é a primeira das obrigações de quem escreve um artigo, um livro e por conseguinte busca informações em entrevistas, livros, revistas, jornais, publicações técnicas, arquivos públicos e redes digitais. Nenhum pesquisador consegue chegar a bom termo se não se valer da rede de conhecimentos e a colaboração de seus pares. Assim, começo por agradecer, sem nominar, aos inúmeros familiares e amigos que contribuíram com informações importantes sobre a vida dos descendentes de escravos em casas e fazendas na cidade de Lavras.
Agradecimento especial aos autores de livros, fotos e artigos sobre a história de Lavras, dentre eles o decano jornalista e historiador Eduardo Cicarelli, os historiadores Geovani Nemeth-Torres que também é diretor do Instituto Histórico e Geográfico de Lavras - IHGL, Bruno Martins de Castro, de São João Del Rei, Marcio Salviano Vilela, de Ribeirão Vermelho, Vinicius Ferreira Batista, Geraldo Bertolucci Junior que além de seus registros e artigos, deslocou-se até o centro da cidade para fotografar a herma do Professor José Luiz de Mesquita que ilustra este artigo e ainda o eminente professor da UFMG, João Amílcar Salgado, primo dos Salles, de Nepomuceno e autor de vários livros e artigos sobre a história de sua cidade entrelaçada à família Salles de Lavras. De Portugal, terra de nossos ancestrais, agradecimentos especiais ao primo Pedro Castro, cidadão português, da cidade do Porto, pesquisador da genealogia e integrante da Família Salles. Foi ele o grande incentivador para a produção do livro da genealogia da família Salles. Agradecimentos também a seu colega, professor e historiador, de Vila do Conde/Portugal, José Ferreira, que escreveu sobre a vida de nosso pentavô, Manuel da Costa Valle nascido em 1704, em Gresufes, Balasar, região próxima à cidade do Porto.
Aos fotógrafos Rogério Salgado, Chico do Valle, Katy Julia, Valério Júlio, também historiador e Renato Libeck (in memoriam), colecionadores e autores da maioria das fotos que ilustram este artigo, nossos agradecimentos especiais. Uma imagem vale por mil palavras. Sem suas fotos, nosso trabalho não teria a riqueza que facilita o leitor a “entrar” no contexto. Rogério foi ainda o responsável pelo design da capa e restauração de fotos antigas recuperadas do baú da família. Por último, mas não nesta ordem, quero expressar meu agradecimento aos meus irmãos Maria José de Abreu (Mariinha), Dilma de Abreu e Anízio Pereira da Silva pela atenção e disposição na busca de informações sobre as fazendas, nomes e registros de pessoas de nosso convívio na infância e juventude dos anos dourados de 1950 e 60, quando, então nosso convívio com os descendentes de escravos foi mais intenso e assim pudemos recolher as impressões que nos marcaram para sempre e aqui registradas.
Compartilhar e discutir ideias, fatos ou registros elaborados por outros autores, nos dá segurança, pois nos permite discernir com mais critério e acuidade e assim retratar os acontecimentos com mais realidade. Inúmeras vezes consultamos nossos parceiros para esclarecer dúvidas. Telefone, e-mail, whatsapp e messenger não davam sossego a eles e às vezes tarde da noite. Nesse sentido, um agradecimento mais que especial ao Professor Jaime de Almeida, da Universidade de Brasília - UNB. Orientador e revisor de inúmeras teses de doutorado, tradutor de obras estrangeiras, dedicou-se com grande interesse à revisão de conceitos e de texto propriamente dito. Sua contribuição, de especialista da área, foi inestimável. A todos os colaboradores o nosso reconhecimento e gratidão pela parceria. Entretanto, as falhas por ventura encontradas neste trabalho são de minha inteira responsabilidade, mas posso assegurar a todos que este trabalho foi escrito com muito amor e respeito à causa e principalmente às pessoas nela envolvidas. Minha consciência não sossegou desde quando ficaram para trás, no colégio, aqueles coleguinhas negros que não tiveram a mesma oportunidade que eu. Rendo também a eles, in memoriam, minhas homenagens que compartilho com os leitores.
Obrigado a todos.
Sumário
00 – Prefácio............................................................................................................. 05
1-
A
escravidão no mundo, a captura do negro na África e a chegada ao Brasil.... 08
2-
O
Negro na nossa história – uma dívida social.................................................. 14
2.1- Os escravos em Minas Gerais e Lavras......................................................... .
17
2.2- A Revolta de Carrancas de 1833 ................................................................... 21
2.3- A execução do escravo Joaquim
Congo em Lavras, em 1838.................... 21
2.4-
Violência e assaltos nos caminhos dos Salles nas Lavras do Funil............. 23
2.4.1 – Efeitos e resquícios da violência na
Escravidão em Lavras ........ 24
2.4.2 – Porte de armas em
Lavras.............................................................. 26
2.4.3 – consequências da
escravidão - racismo e preconceitos................. 28
3- Os Salles e o trabalho escravo nas fazendas
e na cidade..................................... 30
4- Os anos de 1950/60 e as influências da
escravidão em Lavras.......................... 35
4.1- As favelas na cidade de Lavras, 1888
– 1968 ............................................ 44
5- A
Educação e a ascensão social dos negros em Lavras .................................... 45
5.1- As cotas raciais nas universidades ....................................................... 46
6- Conclusão............................................................................................................ 48
Prefácio
Em 1720 aportou no Brasil meu pentavô, Manoel da Costa, que aqui ficou conhecido como Manoel da Costa Vale. Chegou aos 17 anos, abordo de um navio, Queria escapar do serviço militar obrigatório em sua pátria em constantes guerras nos territórios ultramarinos. Manoel da Costa Vale não veio no porão de um navio negreiro. Era branco, de olhos azuis e veio acompanhado de um tio que por aqui já habitava e estivera na pátria-mãe a negócios. Tornou-se bem-sucedido em seus negócios no Brasil e o comercio de escravos não passou ao largo de si próprio e de seus descendentes. Não é fácil falar sobre escravidão em casa. Mexe com sentimentos de todos nós. Na manhã de certo dia, no final da década de 1990, o enorme Airbus 330 da TAP pousou no Aeroporto Internacional de Brasília. O aguardávamos bastante ansioso. Iria receber o garoto angolano, Edson, de apenas dez anos de idade. Negro, filho de uma brasileira e marido angolano, chegava ao Brasil depois de oito anos vividos em Luanda, a capital do país africano de Angola, terra natal de seu pai que o sequestrara de sua mãe, em Brasília e para lá o levou. O segundo marido de sua mãe, um descendente de italianos, vindo da fazenda de meu pai em Lavras, trabalhava em minha chácara. Para lá levaríamos o garoto, órfão de pai, que morrera durante a guerra civil naquele país africano e então retornava para o Brasil. Dúvidas e inquietações mil assaltavam minha mente. Como seria e estaria aquele desconhecido garoto, teria boa saúde, havia estudado as primeiras letras? Tudo isso passava em nossos pensamentos e foi inevitável associar a situação à vida que passamos com os negrinhos da fazenda e das escolas em Lavras, onde o autor vivera a infância e a juventude. Mais longe ainda voaram os pensamentos, associando a viagem de Angola para o Brasil com o tráfico em navios negreiros que traziam escravos. Não, não pude deixar de me entristecer ao lembrar-me da dolorosa escravidão vivida em nosso país e que ainda hoje tem consequências para todos os brasileiros. Uma enorme dívida social. Mas, ali estava mais uma oportunidade para sanar um pouco os erros do passado. Haveria de receber o menino angolano, que deixava o conturbado país de seus parentes e que enfrentava longa revolução civil. Receber, acolher e aqui propiciar-lhe uma vida digna, livre, com educação e lazer como merece toda criança. Chegou o voo, depois de longas horas cruzando os céus do Atlântico, mas desta vez, diferentemente, o menino não foi sequestrado e nem colocado em saco e entregue ao comandante do navio negreiro e metido num porão superlotado. O comandante era, desta vez, de luxuosa e enorme aeronave, onde viajou com todo conforto. Desembarcou acompanhado de uma comissária que nos entregou a papelada e o menino. Inibido, franzino, muito magro, com forte sotaque angolano, quase não falava, vestia roupas surradas e trazia apenas uma sacolinha de papelão, de supermercado, contendo quase nada. Difícil foi conter a emoção, ainda mais quando contou que passava fome e dormia em cima de árvores para fugir das minas enterradas pelos rebeldes que lutavam contra o governo na capital Luanda. Definitivamente, a escravidão no Brasil deixou marcas indeléveis, tanto nos descendentes dos negros escravizados como em nós que com eles convivemos nas fazendas e nas cidades. Qualquer evento envolvendo os negros, como esse do menino que recebi no aeroporto e acolhi em casa, destrava o subconsciente e nos faz refletir sobre os valores da vida.
Falar sobre a escravidão não é fácil,
mas, este artigo faz parte do quarto capítulo do livro “Genealogia da Família Salles de Lavras”, que se encontra em fase
final de produção. O livro conta a história dos Salles desde a chegada do patriarca
da família, o imigrante português Manoel da Costa Valle (1704-1783), casado com Maria do Rosário Pedrosa de Moraes, natural de Guaratinguetá-SP, que
chegou ao Brasil ainda jovem, em 1720. Casou-se em Guaratinguetá-SP e de lá
veio se estabelecer em Lavras no ano de 1750. Nessa cidade nasceram todos os filhos e um
deles, Antônio de Pádua da Silva Leite (1765-1849), ganhou o sobrenome Pádua
por promessa de seus pais ao Santo Antônio de Pádua. Por sua vez, esse filho
também fez promessa a outro santo, São Francisco de Salles e colocou esse
sobrenome em um filho. Fortunato
Antônio Salles (1806-1861) foi o primeiro filho de segundo casamento. Dele descendem
famosos lavrenses como Francisco Salles, Firmino Salles, Pedro Salles e outros.
O segundo filho foi Saturnino de Pádua (1811-1888) que gerou não menos
importantes figuras da cidade como Misseno de Pádua, Cincinato de Pádua, João
Oscar de Pádua, Carnot e Antônio Alves de Pádua (Tonico) dentre tantos. Outro
ramo descendente do patriarca Manoel da Costa Vale, os Costa, que também,
contribuiu com ilustres figuras de destaque em Lavras como o grande educador
Firmino Costa. Os Salles, Costa e Pádua foram das primeiras famílias a se
estabelecer em Lavras e desde então tiveram acentuado protagonismo no
desenvolvimento da região, conforme citado na obra publicada em 2018: História
Geral de Lavras - Volume I, do historiador Geovani Nemeth-Torres.
O livro da genealogia dos Salles trata também das origens da família em Portugal, cujo texto foi especialmente escrito pelo eminente professor e historiador português, José Ferreira. São ainda abordados os principais temas da vida da família, como a chegada do patriarca ao Brasil, a ocupação territorial em Lavras e região, os costumes e a vida social em Lavras nos tempos da Colônia e do Império, a religiosidade, festas, nomes de destaques na política e vida social na cidade e na província das Minas Gerais e ainda a genealogia completa da família Salles. O capítulo 4 do livro é inteiramente dedicado aos costumes e a ocupação territorial da família Salles/Costa/Pádua na região de Lavras, falando da herança cultural diferenciada dos portugueses em relação aos espanhóis (cidade x campo) e em especial da relação dos Salles com a escravidão, tema central deste artigo.
Outros itens compõem o capitulo, abordando a formação das famílias no sul de Minas, o porquê da escolha dos sobrenomes Salles, Costa e Pádua e ainda as moradias com a casa grande e humildes casinhas dos camaradas já no século XX. No campo social durante e após a escravidão são abordadas questões específicas de Lavras, como a chacina de 1833 em Carrancas, a execução pública de escravo na forca da Rua do Cruzeiro, a guerra contra os quilombos e o medo generalizado de ataques de foragidos, mas destacando-se também a participação dos negros na cultura, nas artes, educação e desenvolvimento de Lavras.
Para falar sobre a escravidão em Lavras, com ênfase nas relações da Família Salles com o trabalho escravo e de modo a proporcionar melhor compreensão por parte de leitor, iniciamos com a descrição do sistema escravocrata estruturado. Não era apenas um sistema comercial de compra e venda de gente. Era uma organização estruturada de poder, distribuição e movimentação de dinheiro público, de terras, riquezas como o ouro e outros benefícios e privilégios. A elite tinha acesso a tudo isso e somente eles, os escravocratas. Pior de tudo foi que, além de todos os benefícios usufruídos, ainda usavam a posse de escravos como justificativas para obterem mais terras e benefícios de suas altezas reais ou dos governantes provinciais da colônia. Foi assim em Lavras, com o capitão Francisco Bueno da Fonseca e filhos que, em 15 de janeiro de 1737, solicitaram a primeira sesmaria de Lavras, a concessão das terras que se iniciavam na Ponte do Funil e se estendiam até a foz do ribeirão das Faisqueiras, em frente à cidade de Ribeirão Vermelho, com a alegação de que ali já estavam há sete anos e possuíam grande número de escravos (grifamos).
Assim, iniciamos pelo processo de captura dos escravos na África, em suas tribos de origem, também chamadas de nações, quando então eram vendidos pelos reis aos traficantes, seguindo-se o suplício da viagem de dois meses nos navios negreiros que cruzavam o Atlântico rumo ao Brasil. Aqui eram leiloados no cais do Valongo, no Rio de Janeiro e em seguida levados em caravanas, a pé, para o interior das Minas Gerais. É em Lavras que se desenrola o principal objetivo deste artigo, onde são abordadas questões sobre a escravidão nos tempos da colônia e as relações da família Salles com o trabalho escravo e a ascensão social dos negros. Assim, da abolição pulamos para os anos de 1950/60 quando, ainda menino, seguimos os passos das relações da família com os descendentes de escravos, nas fazendas e na cidade. Este recorte no tempo e no espaço nos deu melhor compreensão dos acontecimentos da escravidão e dos quais muitas das ações discriminatórias e de injustiças sociais perduram até hoje em pleno século XXI, mais de 130 anos já decorridos desde a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel. A escravidão não se extinguiu com a abolição, pois permaneceram os grilhões que impediram o desenvolvimento dos libertos. Sem trabalho, sem a educação, teto e comida, restou quase nada a eles e muitos partiram para criar as favelas na periferia da cidade. Lavras, região típica de produção de café e leite, com alta concentração de escravos, retrata muito bem o que se passou em outras partes do país.
Conhecer e compreender a questão são os primeiros passos para a reflexão individual e coletiva na busca da solução justa diante dessa inegável dívida social para com os descendentes dos escravos negros. Foram subjugados por mais de 300 anos de escravidão e somente agora, mais de um século após a abolição, a sociedade começa a criar mecanismos para a extirpação das desigualdades sociais e combate mais ostensivo ao racismo. Deixemos, portanto, a retórica e partamos para ações concretas e nesse sentido, o autor abre um parêntesis para repetir as palavras de uma cronista: “A estrada que leva quem escreve a quem lê é uma via esburacada, cheia de mal-entendidos, cortada por crenças, preconceitos, humores e idiossincrasias mil”. Assim, ao tratar de tema tão sensível como a escravidão, escravos, negros, torturas, execuções ou mesmo falar da história e vida de seus descendentes, dispensamos os termos recomendados pelas cartilhas do suposto “politicamente correto”, que evita certas expressões como negro, descendente de escravos e outras. Achamos um exagero de retórica, falsidade etimológica mesmo, daqueles que desejam mudar os fatos históricos. Pior ainda, quando o veto ao uso de palavras e expressões se baseia em mitos, lendas e falsas etimologias, usados para narrativas que visem apenas embasar interesses de momento, como se o uso de certas expressões fosse amenizar a realidade. A filosofia nos ensina que as palavras são signos que criamos para designar aspectos ou fragmentos da realidade que nos constitui e nos ultrapassa. Portanto, a linguagem é um símbolo que representa o real. O real, ou a realidade, é aquilo que pode ser visto, testemunhado. Ora se alguém é negro ou branco, o que pode ser testemunhado por muitos, o que é, então, que autoriza proibir a palavra "negro” ? A historiadora Lilia Moritz Schwarcs (30), ensina-nos que é muito comum:
“em
momentos de crise ou de mudanças institucionais, o campo da história se torna
muitas vezes um campo de guerra. Travam-se batalhas pelo monopólio da “verdade”
e se criam ou reativam mitos, de modo a produzir uma versão do passado que
melhor justifique projetos políticos ou de poder”.
Foi exatamente o que aconteceu recentemente em nosso país, quando governantes populistas, do período de 2003 a 2016, criaram novas terminologias para fatos históricos, sob o eufemismo do “politicamente correto”, censurando, vetando o uso de palavras e expressões que já foram absorvidas pela língua há séculos e que só são empregadas com os sentidos, significados que têm e estão vivos e atuantes na mente de quem fala a língua. Ora, não é assim que se combate o racismo. Obviamente que não será por meio de falsas etimologias. Expressões, palavras que depreciem seres humanos têm que ser denunciadas e extirpadas. Mas têm que ser palavras e expressões usadas intencionalmente, com o objetivo manifesto de exercer discriminação e violência simbólica. Assim, as palavras negro, preto, empregada doméstica, por exemplo, não encerram em si, nenhuma ofensa racial. Apenas expressam os significados históricos que têm, não havendo nenhum dolo ou má fé em pronunciá-la num contexto de respeito e seriedade. Se há ou houve algo de errado foi da parte de quem criou o suposto “politicamente correto”, induzindo a pensar que se combate racismo por meio de falsos etimologismos. Sempre procurei ser fiel ao significado das palavras no contexto original da época sem, no entanto e nunca, ser ofensivo e assim retratar a realidade aprendida e vivenciada em meio à família Salles/Pádua e suas relações com os escravos, antes e depois da abolição. Sempre os tratamos com o máximo respeito e não poderia ser diferente ao escrever sobre suas e nossas vidas entrelaçadas desde os tempos da prazerosa infância nas fazendas e na cidade.
Boa leitura!
Paulo das Lavras
Brasília, 06 de janeiro de 2022
(Dia de Santos
Reis – tradição das festas dos escravos no Brasil Colônia)
A escravidão nos
tempos da colônia: Os Salles, o
trabalho escravo e ascensão
social dos negros em Lavras
1- A escravidão no mundo, a captura do negro na
África e a chegada ao Brasil
A escravidão existe desde os tempos bíblicos, mas eram casos localizados e não generalizados ou transformados em negócios. Foram os árabes muçulmanos que estimularam, no século VII, o comercio de escravas para concubinas e homens para os trabalhos da lavoura, comércio e exércitos. A expansão portuguesa na costa africana se deu a partir de 1415 com a conquista de Ceuta, a ocupação das ilhas de Cabo Verde a partir de 1460, a ultrapassagem do Cabo das Tormentas em 1488 - depois chamado de Boa Esperança e finalmente o desembarque na Índia em 1498. O descobrimento do Brasil logo a seguir foi consequência das viagens à Índia e naquela época o tráfico negreiro já existia e com o aval da igreja católica romana. É inacreditável que a Igreja Católica, por meio da bula do papa Nicolau V, tenha autorizado o rei de Portugal, D. Afonso V, a invadir, buscar, capturar e subjugar os negros pagãos da África. A igreja achava justa a escravização porque supostamente preservaria a vida dos escravos em meio às guerras violentas. Esqueceu-se, o papa, que maior violência é a escravização, que rouba a alma, a alegria da vida. Na verdade, o objetivo era outro, fortalecer a religião católica que perdia terreno para os muçulmanos. Além disso, havia à época as teses estapafúrdias de “maldição divina”, baseadas em passagens bíblicas, dando-os como descendentes de Caim, filho de Adão que matou o irmão, ou de Cam o filho amaldiçoado de Noé, verdadeiras teses racistas. Aqui no Brasil, os índios foram escravizados com a ajuda dos jesuítas e aprovação do papa, usando o mesmo argumento de evangelização e assim os atraíam para o meio do colonizador. Só não prosperou por causa da rebeldia do índio que não se submetia ao trabalho forçado e era bom na flechada e sabia fazer tocaias nas matas que conhecia como a palma da mão. Ademais, além desse grande obstáculo, havia ainda o fato de que os indígenas eram muito severamente atingidos pela varíola e outras doenças trazidas do Velho Mundo, morrendo aos milhares. Assim, por conta desses dois importantes fatores, os portugueses acabaram abandonando os objetivos de escravizá-los. Estudos mais recentes (29) indicam que os impactos de doenças europeias foram determinantes na extinção da civilização andina e os especialistas, historiadores, acham que não deve ter sido muito diferente no Brasil, razão pela qual os portugueses também deixaram de escravizar os indígenas por aqui.
Diante
do fracasso na escravização do índio, a opção foi buscar o negro no continente
africano e com as bênçãos do papa. Entre os anos de 1501 e 1870, cerca de 12,5
milhões de negros foram arrancados de suas casas na África, sequestrados e
escravizados. Capturados, eram forçados a marchar até o litoral africano, onde
os traficantes os encarceravam em fortalezas bem armadas e protegidas contra
assaltos ou rebeliões e fugas. Em seguida eram vendidos a traficantes
internacionais, a maioria de portugueses com destino às suas colônias na América.
Amontoados, acorrentados, mal alimentados e açoitados nos navios negreiros,
muitos morriam durante a longa travessia do Atlântico que durava, no mínimo,
dois meses. Seus corpos eram atirados aos tubarões que, em cardumes, seguiam na
esteira do navio até o Rio de Janeiro, destino final da viagem. O desespero era
tanto que muitos pulavam no mar, buscando abreviar a morte, mas, sempre evitada
pelos marujos, pois representava prejuízo financeiro para o comandante da
embarcação e seus financiadores.
Não é fácil aceitar a triste realidade da escravidão que durou mais de três séculos no Brasil e no mundo. Como pôde isso acontecer e perdurar até o final do século XIX? Por que escravizar alguém, retirando-lhe a liberdade, o direito de ir e vir, impor-lhe o trabalho forçado, separando-o da família? Por que a igreja se associou ao comércio negreiro, expedindo autorização ao rei de Portugal para capturar e escravizar os negros? Por que o Brasil foi a última nação americana a abolir a escravatura? O que foi feito no pós-abolição para reparar os danos causados aos negros? Muitos gostam de indagar isso e até se indignam com a situação passada.
Mas, não se pode falar dos escravos da família Salles, ou da província de Minas Gerais ou ainda do Brasil inteiro com suas explorações de pau-brasil, cana de açúcar, ouro, café e serviços para toda a sociedade escravocrata sem que conheçamos a história da escravidão no Brasil e no mundo. Quais foram os efeitos da escravidão com suas torturas sobre a vida dos negros e seus descendentes? Por que, ainda hoje perduram atividades de cunho discriminatório? Por que 19 das 50 cidades mais violentas do mundo estão no Brasil? Por que existe, persiste e não acaba nunca, verdadeira guerra civil nas periferias das cidades brasileiras, principalmente no Rio e São Paulo e cujos enfrentamentos são mostrados diariamente nos noticiários? Alguém já perguntou a eles, os negros, o que acham? Quais os traumas no pós-abolição, ainda hoje, mais de 130 anos depois? Pois bem, este autor viveu e conviveu, na infância e nos tempos de escola, com filhos e netos de ex-escravos quando ainda se contava menos de 60 anos após a decretação da abolição. Alguém já imaginou como foi para os libertos a segunda feira 14 de maio de 1888, o dia seguinte à abolição de 300 anos de violenta escravidão? Simplesmente acordaram despejados, sem trabalho, moradia, comida e um existir sem dignidade. Só lhes restaram os caminhos das estradas, vagando em busca de algo, ou melhor, de tudo que lhes faltavam. Este autor, criança ainda, nem precisou perguntar isso aos filhos e netos de ex-escravos. Sentiu na expressão facial a tristeza de cada um daqueles descendentes, os poucos que permaneceram nas fazendas. Contavam-nos suas histórias com a mais profunda dor no coração ao relembrar tudo que seus pais lhes repetiram. Tinham liberdade para contar e expressar sentimentos, pois sempre tiveram o apoio de nossa mãe, uma Salles, que conviveu com eles por toda a vida, protegendo-os, sempre. Os meninos da casa grande, crianças, se comoviam com as histórias dos tempos da escravidão e foram ensinados a amá-los como irmãos.
Hoje,
passado tanto tempo, é comum se esquecer de que a sociedade brasileira ainda cultiva
o hábito patrimonialista, nunca abandonado pela nossa sociedade, conforme
afirmam os historiadores. Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Darcy
Ribeiro, Florestan Fernandes, Laurentino Gomes, Raymundo Faoro e outros da
atualidade que, inspirados em Max Weber, autor do conceito de patrimonialismo,
estudaram os mecanismos da formação e manutenção do poder das oligarquias,
tanto na política quanto nas relações econômicas. O patrimonialismo surge
quando não há distinção entre o público e o privado e as duas coisas se
misturam. Na carta de Pero Vaz de Caminha, informando ao rei sobre a descoberta
do Brasil, pode-se encontrar sinais de tratamento da coisa pública transformada
em uso comum ou propriedade privada. O patrimonialismo é, portanto, quando o
político cria mecanismos de controle de estruturas e agências de Estado para
obter privilégios e vantagens pessoais. Isto se acentuou na época do Império com
o domínio dos fazendeiros, a elite rural que financiava e dominava o Estado.
Hoje acontece o mesmo na politica. Em pleno século XXI, repete-se o modus operandi que dominava o Império
Brasileiro de dois séculos atrás. A diferença é que no Império se apropriavam
de pessoas – os escravos e agora se apoderam dos recursos financeiros, bilhões
de reais sob a forma de “Orçamento Secreto”. Suas excelências, os políticos,
podem usá-lo à vontade, secretamente, sem que ninguém lhes possa cobrar
responsabilidades. Antigamente as “Excelências”, os deputados da corte do
Império, declaravam que não abririam mão de seus lucros e que jamais pagariam
salários para seus escravos. De fato nunca pagaram, tanto assim que a situação
salarial dos trabalhadores rurais só começou a se normalizar depois das
reformas aprovadas no início da década de 1960. Se antes as Excelências
declararam que não pagariam salários, hoje, além dos gastos secretos, alguns
políticos ainda sequestram os pagamentos de seus funcionários, praticando a
famosa “rachadinha” do salário de seus servidores.
Nos tempos do Império a oligarquia, representada
principalmente pela elite rural, emparedou a Princesa Isabel e a impediu de
incluir na Lei da Abolição o benefício de doação de pequeno lote de terras para
a subsistência dos escravos. Após a abolição foram, ainda, aprovadas leis para
dificultar a vida dos libertos. Baixou-se a idade de responsabilização penal e de repressão à vadiagem, para forçar os
libertos a aceitar salários exíguos, e para prender e, em certos casos, deportar
capoeiristas, ou ainda para enviar crianças ao trabalho forçado nos arsenais
militares e outras áreas que exigiam mão de obra. Ora, cultivar a terra
era a única coisa que praticamente a maioria dos escravos sabia fazer. Mas,
ainda assim, a elite rural preferiu jogar os negros na miséria, literalmente na
estrada e na periferia dos vilarejos abandonados à própria sorte. Hoje, quase
século e meio depois, ainda vemos manchetes nos jornais e noticiários televisivos
mostrando a vida miserável de grande parte dos negros, com panelas vazias,
morando em locais insalubres com perigo de desabamentos e inundações, alta
criminalidade e sem a menor presença de serviços públicos. A geografia da fome,
mostrada por Josué de Castro em 1946, ainda está presente em pleno século 21,
com crueldade e miséria nos territórios de extrema pobreza.
Não é de se estranhar que ainda hoje
persistam tais condições, pois, desde sempre a escravidão foi uma atividade
comercial estruturada que proporcionava lucros a todos que dela se serviam. Chegou
ao Brasil logo após a sua descoberta, quando o governador Martin Afonso de
Souza trouxe da África, em 1532, os primeiros escravos negros para trabalhar
nos engenhos de açúcar e na exploração do pau- brasil. Desde então e nos três
séculos seguintes, cerca de seis milhões de negros foram importados da África,
diretamente para o Brasil, a metade de todos os escravos saídos do continente
africano para a escravidão no mundo inteiro. E por que esse enorme fluxo de
escravos? Interesse comercial de Portugal. Primeiramente pelo fato de que em
1640 ao libertar-se do domínio espanhol, o país estava na miséria. Precisava
achar ouro em suas colônias para recuperar as finanças. Por isso incentivou os
paulistas com as chamadas Entradas e Bandeiras em busca do ouro. Foi assim que
Fernão Dias Paes Leme iniciou sua bandeira em 1674 e andou pelos sertões de
Minas por sete anos, semeando roças e povoados, desbravando os primeiros
caminhos, na verdade picadas para a tropa de burros e seus homens que incluíam
escravos índios, a maioria, poucos negros africanos e mulatos. O ouro só foi
descoberto em 1692, mas, já em 1705, começou a grande imigração de portugueses
para o Brasil, na chamada “febre do ouro”. A evasão foi tão grande que o rei de
Portugal teve que proibir a saída dos portugueses, pois temia-se que o país se
esvaziaria. A invasão de toda sorte de gente ao território das Minas Gerais foi
tão grande que, em 1720, expediu-se uma lei proibindo totalmente a entrada nas
Minas Gerais.
Mas, a descoberta do ouro e esse afluxo de pessoas, vindas de Portugal e toda parte da colônia brasileira, esvaziando-se até mesmo os engenhos de açúcar do nordeste, provocou a escassez de alimentos e carestia de todos os gêneros e consequentemente a falta do braço escravo negro africano. Este, o negro, seria a solução, pois o investimento na escravização dos índios não era seguro em razão das epidemias e pela forte oposição dos jesuítas. Foi então que se expandiu o fluxo de escravos, atingindo-se a impressionante cifra de seis milhões de escravos negros africanos embarcados em 300 anos de tráfico para as Américas. Desse total, 30% (trinta por cento) morreu durante a viagem. Cerca de 1,8 milhão de negros cativos não resistiram à inanição, insalubridade e maus tratos durante a longa travessia do Atlântico que durava dois meses ou mais. O elevadíssimo número de mortos, durante a viagem de travessia do Atlântico, dá uma ideia de como eram tratados os cativos desde a sua captura e viagem para o Brasil. E por que tantos escravos? Simplesmente porque o trabalho, no sistema escravista, era considerado algo degradante que feria a reputação de um homem livre, principalmente se fosse branco, europeu e português. Portanto, o trabalho braçal era só mesmo para escravos e estes não faltavam, pois o tráfico já estava estruturado com importação liberada e incentivada, além do que os reis de Portugal já tinham até mesmo autorização do papa da poderosa igreja católica. Ademais as sucessivas guerras na península ibérica contra os mouros e mais tarde contra a Espanha, destroçaram a economia e finanças de Portugal e a ordem do reino era buscar ouro nas colônias e, efetivamente houve a descoberta do precioso metal em Minas Gerais, no ano de 1693. Mal começou o século XVIII e disparou a febre do ouro em Minas com intensa demanda de mão obra escrava.
Em Lavras a chegada dos escravos se deu praticamente com a sua fundação. O historiador Nemeth-Torres aprofundou as pesquisas em fontes primárias e afirmou com segurança que os escravos chegaram a Lavras, no ano de 1729, com os fundadores da cidade que se estabeleceram na sesmaria, cujos limites se iniciavam no funil do Rio Grande e estendiam-se até a barra do ribeirão das Faisqueiras, o qual desagua na margem esquerda do rio, em frente à atual cidade de Ribeirão Vermelho. Na carta de sesmaria concedida a Francisco Bueno da Fonseca e filhos, em 15 de janeiro de 1737, havia a seguinte afirmação sobre a existência de escravos:
“... que eles suplicantes se achavam com
grande número de negros.... e porque tinham posses e benfeitorias há mais de sete anos...” (1).
Nos anos seguintes, durante o ciclo da mineração em Lavras e principalmente após o esgotamento das minas de aluvião, a produção agropastoril se intensificou, demandando grande volume de mão de obra na ocupação e exploração das terras. A solução foi a
________
(1) Nemeth
Torres, Geovani- História Geral de Lavras, Volume I, 2018. 296 p.: il. pgs 42-43.
em frente à cidade de Ribeirão Vermelho
Foto: coleção Renato Libeck - 1984
importação
de escravos negros de suas colônias africanas. O tráfico de escravos era uma
atividade totalmente estruturada e as primeiras instituições que se organizaram
para a exploração comercial dos escravos foram as agências bancárias inglesas,
que financiavam as expedições de navios negreiros. A segunda organização
estruturada localizava-se no próprio continente africano, a pátria mãe dos
negros e era constituída pelas nações,
cujos reis guerreavam entre si e escravizavam os povos vencidos. Aprisionados
em guerras ou mesmo por meio de expedições de captura, às vezes comandadas por
tropas dos capitães de navios, os negros eram levados para as feitorias
portuguesas situadas em toda a costa da África, onde eram vendidos aos traficantes.
Estes, os traficantes, se constituíam na
terceira instituição estruturada do tráfico negreiro e se davam ao luxo de
construir feitorias com fortalezas armadas, bem protegidas contra assaltos,
verdadeiros “armazéns de escravos” que aguardavam compradores. Por último aparecem na cadeia do
tráfico de escravos a quarta instituição, os compradores brasileiros, grandes proprietários
de terras que encomendavam a vinda dos escravos. No Valongo, ocorriam os
leilões daquela “mercadoria”, a mão de obra para as fazendas e em menor escala
para serviços do comércio e residências da cidade.
Como
se vê, a escravidão era uma atividade totalmente estruturada que proporcionava
grandes lucros para todos, as agências bancárias londrinas, traficantes
instalados na costa da África, reis de nações africanas que vendiam os
escravizados, comandantes de navios negreiros, traficantes brasileiros
instalados no cais do Valongo e os próprios compradores e usuários dos
escravos. É de doer a alma a violência praticada contra os negros, arrancados à
força de suas casas, sua família. Mais dolorido, ainda, foi conhecer a história
de um arquiteto baiano, Zulu Araújo, que em 2013 em visita ao rei da nação
africana ticar, Gah Ibrahin, no país de Camarões, na África, terra de seus
ancestrais e não muito distante do território dominado pelo grupo terrorista
Boko Haram. Confrontou o rei perguntando-lhe, de surpresa, mas de forma bem
serena: “Eu gostaria de saber como é que nós, que somos da etnia ticar, fomos
parar no Brasil”. Surpreso, o rei não teve resposta e pediu para responder no
dia seguinte. Assim o fez, respondendo que seu povo fez aquilo por ignorância e
para se livrarem de maus elementos dentro da comunidade. Pediu perdão ao
arquiteto e disse que precisavam se reconciliar com aqueles que foram
deportados, vendidos aos mercadores portugueses. O arquiteto Araújo, mais
surpreso ainda com a confissão do rei e o pedido de perdão, declarou que a
presença dele, ali, representava a materialização da
reconciliação (2).
___________
(2)
Gomes, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em
Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares - Volume I. Rio de Janeiro: Globo Livros,
2019. 479 p. pag 172-174
O volume dos lucros advindos da atividade do
tráfico de escravos, era algo extraordinário para a época. Basta dizer que em 300
anos, de 1550 a 1850, foram enviados ao Brasil seis milhões de negros cativos,
dos quais morreram cerca de 30% antes de chegar ao destino. A maior parte dos escravos foi importada durante o período chamado de “febre do
ouro”. A necessidade de braços para a extração do ouro era desmedidamente
grande e proporcional à intensidade da imigração de portugueses para o Brasil
naquele período. Minas Gerais possuía grande disponibilidade de terras
apropriáveis e chegou a ter, no século XIX, a maior densidade demográfica de
todo o Império, concentrando-se também o maior população escrava, cerca de 2,5
vezes superior à média nacional. Eram 168.543 escravos em 1819, saltando para
381.893 no ano de 1872. Foram importados cerca de 320 mil escravos na primeira
metade do século XIX, verdadeira explosão da demanda em função da expansão das
atividades mineradoras e, por consequência, o aumento da produção de alimentos
para toda aquela gente que chegava aos sertões das “Geraes” (3). O censo do
império revelou que entre 1831e 1840, cerca de dois terços (66%) das
propriedades rurais de Minas Gerais, de pequeno tamanho, tinham até cinco
escravos. Em apenas 163 delas havia mais de 30 escravos e a maioria das
pequenas fazendas era abastecida de escravos por traficantes que os traziam do
mercado do cais do Valongo, levando-os em caravana para a província das Minas
Gerais.
________
(3) Castro, Bruno M. Forjando liberdades na encruzilhada da escravidão: as alforrias cartoriais do termo de São João Del Rei (c.1830- c.1860). Bruno Martins de Castro- Curitiba: CRV, 2021. 166 p. pg 35
2-
O Negro na nossa história – uma dívida social
A história de Minas Gerais ganhou destaque no final do século XVII quando foram descobertas as jazidas de ouro e pedras preciosas. A partir de então a chegada de grande número de escravos negros modificou completamente o perfil da população. Havia os que trabalhavam e os que mandavam. Os negros foram estigmatizados pela cor da pele que trazia o símbolo da subalternidade, do escravo vendido no cais do Valongo, instrumento, ferramenta para produzir no campo ou na cidade. Nos tempos escravistas o trabalho, como dito antes, era coisa somente para negros, algo degradante que manchava a reputação do branco europeu ou nascido na colônia. Machado de Assis, grande escritor brasileiro, nascido em 1839, neto de escravos alforriados escreveu em 1880 o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Esse romance, joia da literatura brasileira, é uma sátira retratando a escravidão e as classes sociais da época, destacando as elites ricas do Rio de Janeiro que mantinham escravos e tinham horror ao trabalho. O menino endiabrado, Brás Cubas, quebrava, literalmente, a cabeça das escravas que não atendessem a seus pedidos. Ganhou de presente um negrinho, o moleque Prudêncio, no qual montava como se fosse seu cavalo. O pior de tudo vem no final, Brás Cubas disse que se orgulhava de nunca ter ganhado o pão com o suor de seu rosto, ou seja, nunca ter sujado as mãos com trabalho. Como se vê, até na literatura clássica dos romances se descrevia com ênfase a ojeriza da elite em relação ao trabalho, coisa para escravos, conforme contado pelo escritor e neto de escravos, oito anos antes da abolição da escravidão.
Escravo e trabalho foi uma dupla que atravessou séculos, mesmo após a abolição da escravidão. Em países escravocratas como o Brasil do século XIX nada se fazia para amenizar o trabalho escravo. Foi por isso que aqui não se desenvolveram pesquisas na área da mecanização agrícola, por exemplo, pois havia braços escravos em abundância. Aliás, nem mesmo a primeira escola superior de agricultura foi adiante. Criada por decreto de 1859, juntamente com o Imperial Instituto Bahiano de Agricultura, esperou quase 18 anos para ser inaugurada. Foi necessário novo decreto, de 23 de junho de 1875, mas ainda assim só teve início efetivo em 15 de fevereiro de 1877 na Fazenda Engenho de São Bento das Lages, com o nome de Escola Agrícola da Bahia (4). Destinava-se a ministrar curso em dois graus, o elementar e o superior. Mesmo sendo curso superior não atraiu nenhum aluno. Ninguém no país escravocrata queria ser agrônomo, engenheiro agrícola, silvicultor ou veterinário, profissões cujos cursos foram propostos à época. E por que faltavam alunos? Simplesmente predominava a ideia de que o trabalho de campo nas fazendas era tarefa para escravos e não para brancos. Filhos de brancos estudavam na Europa, de preferência em Coimbra para ser Engenheiro, Advogado ou Médico, as profissões nobres da época. Mas, o governo imperial não se fez de rogado. Buscou professores na França, instalou o primeiro curso, de agronomia e foi buscar alunos nos estabelecimentos pios da Santa Casa de Misericórdia. Foram admitidos 18 alunos pobres, vestidos pelo Imperial Instituto Bahiano de Agricultura, dos quais apenas 10 agrônomos se formaram em 1880 na primeira turma de diplomados. As dificuldades foram tantas que essa escola pioneira veio a ser fechada em 1902, mas felizmente foi reaberta em 1920. Não à toa, a evolução do ensino e da pesquisa agrícolas no Brasil no início do século XX, não acompanhou o desenvolvimento verificado nos EUA e na Europa. Hoje, no entanto, lidera a pesquisa agrícola tropical e é um dos primeiros produtores mundiais de grãos, frutas e carne.
_______________
(4) Silva, Paulo R.. - A Formação do Profissional de Nível Superior na Área das Ciências Agrárias - Proposta de currículo Mínimo - MEC/SESu Brasília - 1981 - 260p.
Essa definição imprópria de que o trabalho era destinado somente aos escravos dificultou a vida dos negros, pois ficaram atrelados a esse equivocado conceito, mesmo depois da abolição. Tinham menos oportunidades de emprego e educação. A sociedade se hierarquizou em classes, deixando os negros nas camadas subalternas, discriminando-os de forma velada e não tão ostensiva como nos E.U.A e outros países. Os índices de analfabetismo e desemprego entre os negros sempre foram os mais elevados, criando-se um ciclo vicioso do mal, que só começou a ser quebrado no início do século XXI com a criação de leis de igualdade racial. Tampouco é preciso mencionar os inúmeros casos de injustiça racial, diariamente exibidos nos meios de comunicação com prisões injustas e até mesmo execuções de negros pelo simples fato da cor da pele. Por qualquer motivo são logo colocados sob suspeita. As prisões e execuções arbitrárias de negros mostram, claramente, que o pelourinho ainda está presente, mesmo depois de 130 anos da abolição. A sociedade brasileira ainda não está pacificada com a causa dos negros. Há, ainda, muitas desigualdades raciais e sociais, fatores determinantes para a vida precária e excludente da população negra brasileira. Por isso, é inegável que temos uma enorme dívida social para com os negros. Essa dívida é ainda maior na área educacional, onde a discriminação racial foi terrível durante e depois da escravidão. A Constituição de 1824, logo no início do Império, já proibia que negros tivessem acesso ao ensino. Não satisfeitos, trinta anos depois, em 1854 foi aprovado o Decreto 1.331 que proibia a admissão de negros nas escolas públicas. Em 1878 outro decreto, de nº 7.031-A, determinava que os negros só podiam estudar no horário noturno. Assim, a sociedade brasileira virou o século XIX com a abolição da escravatura, passando do trabalho escravagista para a sociedade do trabalho livre, mas, reproduzindo nas três primeiras décadas do século XX a lógica da dominação do poder do capital e das desigualdades. Pouca coisa mudou na situação dos ex-escravos e ainda, naquelas décadas, houve fortíssima leva de imigração europeia, para a qual se oferecia trabalho assalariado ou sistemas de parceria, colonato e outras formas de contrato nas plantações. Depois de 1930 perdurou a mesma situação de segregação, pois não houve leis para a igualdade racial, o que só veio a acontecer no início do século XXI (5).
Com a proibição dos negros se matricularem em escolas o Brasil negou-lhes duplamente o direito à cidadania, não lhes dando condições de sustento e progresso social. Os negros não foram totalmente libertados. De que adianta a liberdade física, acabar com os grilhões, mas não incorporá-los à sociedade brasileira? Manter a desigualdade, a exclusão, a pobreza e consequentemente o racismo, foi uma crueldade sem limites. Teria sido diferente se a Lei Áurea tivesse sido contemplada com mais um artigo, garantindo “um sistema público de educação para todos” indistintamente. O educador Cristovam Buarque (6) disse que até hoje o Brasil não quis completar a Lei Áurea criando um Sistema Nacional de Educação de Base. Deixa-se tudo a cargo da família ou do prefeito, não do país e completa: “Nos navios negreiros havia marujos com a tarefa de impedir os escravos desesperados a pularem no mar, pois a morte deles era uma perda financeira pra o proprietário. Hoje não oferecemos escolas que assegurem a seus alunos a quererem permanecer nelas e se eles quiserem pular no mar da deseducação, aceitamos que o façam sem percebermos a perda que isso representa para o futuro de cada um deles, para suas famílias e para todo o país”. Acorda, Brasil!
Felizmente
a sociedade brasileira passou a reconhecer sua imensa dívida social para com os
negros, ainda que tímida e tardiamente, por meio das cotas raciais nas
universidades,
____________
(5)
Oliveira, Reinaldo J. e Souza Oliveira, R.. Origens da
segregação racial no Brasil - https://doi.org/10.4000/alhim.5191, consultado em
18/12/2021.
(6)
Buarque, Cristovam. Lei incompleta. In: Correio
Braziliense – Brasília-DF. 20 de maio de 2021,
p. 13
a Lei 12.711/12. Cotas
que só chegaram em 2012, com 124 anos de atraso em relação à abolição, embora
as elites rurais tivessem sido bastante diligentes em benefício próprio, como em
1968, quando aprovaram Lei 5.465/68, que ficou conhecida por lei do boi. Esta
lei reservava 50% das vagas nas instituições de ensino de agronomia, veterinária
e cursos técnicos agrícolas, para os filhos de fazendeiros, com claro e exclusivo
favorecimento aos proprietários de terras. Já naquela época, quarenta anos
antes, desprezaram os negros que, naquele exato ano de aprovação da lei do boi,
representavam apenas 1,2% dos diplomados em cursos superiores. Não bastasse
isso a mesma elite rural que antes aprovara privilégios para seus filhos, instituindo
a lei do boi, ainda se insurgiu contra a lei das cotas raciais de 2012. As
alegações para torpedear o projeto de lei foram várias e infundadas como a
suposição de que promoveriam uma guerra nas universidades, que os alunos
cotistas teriam dificuldade em conviver naquele ambiente, que eles não
acompanhariam o nível educacional da universidade ou então que o nível do
ensino superior seria rebaixado. Não contentes, os segmentos de empresários e
fazendeiros que foram tão zelosos na aprovação da lei do boi, recorreram ao
Supremo Tribunal Federal para barrar as cotas universitárias para negros,
demonstrando insensibilidade para com a justiça social. Aliás, a lei das cotas
universitárias foi das mais bem sucedidas e hoje contamos com considerável
presença de negros em cursos superiores, embora essa lei represente apenas um
pequeno esforço na reparação dos danos causados em 300 anos de escravidão e
outros mais de 100 após a Lei Áurea.
As
políticas de igualdade racial precisam ser incentivadas, pois só assim
obteremos resultados que ultrapassem, em larga escala, aqueles míseros índices
de 1967, com apenas 1,2% de negros diplomados em cursos superiores. Felizmente,
com a lei das cotas raciais, o percentual de negros nas universidades
brasileiras saltou para 30% em menos de dez anos de vigência da referida lei.
2.1- Os escravos em
Minas Gerais e Lavras
Se antes a demanda de escravos era devida unicamente à exploração do ouro, mais tarde migrou totalmente para a produção agropastoril. A mão de obra escrava produzia alimentos para a crescente população e também para os comerciantes tropeiros que rumavam para as novas jazidas de ouro em outras regiões. Por isso, nesse contexto histórico e sobretudo geográfico da província das Minas Gerais, a comarca do Rio das Mortes, cuja principal vila era São João Del Rei e que tinha Lavras como parte de seu território, ostentava a maior quantidade de escravos. A região era o cruzamento das rotas de tropeiros e viajantes que vinham do Rio de Janeiro e São Paulo, pela estrada real, bifurcando-se ali em direção às minas de Goiás e Mato Grosso ou então para a capital Ouro Preto e demais vilas ao norte de Minas, como Sabará, Diamantina e Paracatu do Príncipe. A população escrava na região de Lavras, a comarca do Rio das Mortes era, em 1821, a maior de toda a província de Minas Gerais e contava com 71.147 escravos negros registrados. Em segundo lugar aparecia a comarca do Rio das Velhas (Sabará) com 42.218 cativos, um pouco mais da metade registrada na região de Lavras. Vila Rica, a capital da capitania das “Minas Geraes”, tinha somente 26.736 e Paracatu, 6.249 escravos. Em Lavras havia no ano de 1814 um total de 128 escravos registrados nas minas de ouro, segundo relato do cientista alemão Von Eschwege, que passou pela região em viagem de estudos (7). Este número não inclui os escravos dedicados à grande exploração agropecuária de subsistência e comercial e tampouco os pequenos garimpos, vez que os registros da Coroa indicavam apenas as minas de “real grandeza”. Em excelente pesquisa realizada pelo jornalista e historiador lavrense, Eduardo Cicarelli (8), foram levantados os dados de censos oficiais e verificou-se que, existiam 6.322 escravos em Lavras, de um total de 311.666 cativos da província de Minas Gerais, conforme registros de 5 de janeiro de 1883, do serviço de estatística da Província. O mesmo artigo informa, ainda, que a maioria dos escravos de Lavras era de origem do Congo e Angola (Bantos). Gostavam de batuque, capoeira, festas de congadas e danças. Eram bem mais dóceis que os sudaneses, muçulmanos de índole rebelde, sempre liderando as rebeliões, fugas e criação de quilombos. Tanto é verdade que na própria região de Lavras chegou a se formar um quilombo às margens do Rio das Mortes, agrupando grande número de negros e indígenas. Em 1743 havia muitos quilombos ao redor de Lavras, nas proximidades de Nepomuceno (Trumbucas), Carmo da Cachoeira (Gondu) e ainda o quilombo do Quebra-Pé em Três Pontas.
Em 1751 uma expedição armada partiu de Lavras e dizimou um quilombo na região de Três Pontas e os últimos ataques aos quilombos da Confederação Quilombola do Campo Grande, comandados por Bartolomeu Bueno do Prado, ocorreram entre 1757 e 1760. Segundo seus informes ao governador, trouxe 3.900 pares de orelhas de negros e índios, número contestado por alguns autores, embora outros apresentem dados de que a população do Quilombo do Campo Grande era de dez a quinze mil rebeldes, quando da última Guerra de 1759/60 (31). Esse enorme quilombo começava em Ibituruna e se estendia até Ibiá e espalhava medo na população da comarca do Rio das Mortes (9). Segundo as pesquisas do historiador Nemeth-Torres a população temia viajar pelos caminhos da região e esse foi o principal motivo do pedido de transferência da sede da paróquia de Carrancas para Lavras (10). A transferência da paróquia se deu justamente ano de 1760, quando Bartolomeu Bueno, saindo de Lavras com sua tropa atacou o quilombo do Cascalho na serra de Três Pontas. Um pouco antes, em 1737, o capitão Francisco Bueno da Fonseca, também manifestou às autoridades provinciais que temia andar pelas vizinhanças de Ibituruna, pois estavam infestadas de quilombolas que assaltavam os viajantes, como se verá mais adiante.
Assim, viajar até Carrancas, para
assistir aos cultos na igreja matriz, onde ficava o vigário, era por demais
perigoso. Cabe aqui lembrar que, segundo o mesmo autor, o patriarca da família
Salles, Manoel da Costa Valle foi um
dos subscritores da petição ao bispo de Mariana para a transferência da
paróquia para o arraial das Lavras do Funil (11). Mas,
ainda de acordo com o mesmo autor, esse medo de assaltos no caminho, embora
tenha sido o maior motivo, não foi o único para que a cúria de Mariana
aprovasse a transferência da paróquia de Carrancas para Lavras. Havia também, o
fato de que os Bueno, além de proprietários de muitas terras em Carrancas e
Lavras, eram aristocratas inseridos em sólidas redes familiares,
_________
(7) Von
Eschwege, Wilhelm Ludwig. "Freguesia
de Sant'Ana das Lavras do Funil".. In: Pluto Brasiliensis: Memórias sobre as riquezas do Brasil
em ouro, diamantes e outros minerais, v. 2, pp. 58-59. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1944. Série Brasiliana, 257. (Publicado em1833 em Alemão, Berlin: G Reimer).
(8)
Cicarelli, Eduardo. A escravidão em
Lavras. In: Jornal Lavras News.
Edição eletrônica, consultada em 09/09/2005- Lavras Online.
(9)
Martins,Tarcisio
Jose.
Quilombo do Campo Grande: A história de Minas que se devolve ao povo. Edição
ampliada. https://books.google.com.br/books?id=knV0s_U7FVcC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false
consultado em
22/12/2021.
(10) Nemeth-Torres, G.. Os 250 anos da
Paróquia de Sant´Ana: Uma história da Igreja Católica em Lavras. Edição do
autor. Lavras MG, 2010. 106 p – pg 45
(11)
Nemeth-Torres, Geovani. 2010 Op,
cit. pg 43
se
relacionando com todos, inclusive com o patriarca da família Salles. Os Bueno
gozavam, portanto, de grande prestígio
regional e em toda a província, a ponto de até emprestaram o nome ao povoado de
Lavras que inicialmente era conhecido por “Povoação dos Bueno”. Não bastasse
isso, os Bueno estavam, havia anos, no comando da missão do governo colonial
para pacificar o quilombo do Campo Grande e justamente naquele ano de 1760 ele
venceram o do Cascalho, em Três Pontas. Isso os deixavam em posição política privilegiada,
o que certamente influenciou na decisão eclesiástica de transferência dos
direitos de paróquia para a Igreja do Rosário em Lavras (12).
Além
dos antigos medos, a população de Lavras havia passado por outros trágicos
acontecimentos como as de 1833, em Carrancas e o enforcamento do escravo
Joaquim Congo em 1838. Portanto, as reações dos negros de Lavras contra os maus
tratos foram consideráveis. As revoltas e fugas tinham como motivação os
constantes maus tratos com violentas torturas físicas que, não raras vezes,
chegavam a provocar a morte do escravo. A literatura sobre a escravidão em
Lavras, segundo pesquisas do jornalista e historiador Eduardo Cicarelli (13),
registra que havia, até o ano de 1831, ao lado da Igreja do Rosário, um
pelourinho em forma de coluna de pedra lavrada, onde os escravos rebeldes eram
amarrados e açoitados em plena praça pública. Uma das pedras deste pelourinho permaneceu
por mais de cem anos nos fundos da atual Igreja do Rosário, na calçada do
sobrado do Capitão Evaristo Alves e servia
de banco para os frequentadores do armazém do capitão, tendo sido retirada em
1935, segundo o citado autor.
_____________
(12) Nemeth-Torres, Geovani –2010.
op cit. pg 46
(13) Cicarelli, Eduardo. A escravidão em Lavras.
In: Jornal Lavras News. Edição
eletrônica, 2002 - consultada em 09/09/2005- Lavras Online
Há
em Lavras inúmeras histórias e registros de escravos e numa delas informa-se
que o inventário de Joaquim Tavares Coimbra, de 23 de maio de 1872, deixava para
seus filhos 30 escravos, sendo 19 mulheres e 11 homens. Sobre a violência
contra escravos ou deles próprios contra os patrões, Cicarelli (14) pesquisou os arquivos do mapa geral dos
julgamentos proferidos pelo Júri da Província de Minas Gerais e ali se registra
que a Vila de Lavras foi considerada a mais violenta do ano de 1844. Em toda a
Comarca do Rio das Mortes, que compreendia entre outras, São João Del Rei,
Carrancas, Ibituruna e Lavras, ocorreram 13 crimes, sendo oito praticados na
Vila de Lavras. Na vizinha Nepomuceno, que fazia parte de Lavras, há relatos do
historiador João Amilcar Salgado (15), médico e professor da UFMG, com
raízes na família Salles, dando conta da existência de locais com passado
turbulento, cheios de violência. _
_______
(14) Cicarelli,
Eduardo. 2002 – op.cit
(15) Salgado,
J. Amilcar. Nepomuceno: De
como esta cidade está no mapa sentimental de Minas. In: http://jamilcarsalgado.blogspot.com.br/2010/09/nepomuceno-de-como-esta-cidade-esta-no.html
2.2- A
Revolta de Carrancas de 1833
Um
grupo de escravos revoltosos assassinou em 1833 o fazendeiro e Juiz de Paz, José Francisco Junqueira, filho do
deputado e também fazendeiro em Carrancas, Gabriel Francisco Junqueira. Vários membros da família foram mortos pelo mesmo
grupo de escravos que havia sido insuflado por inimigos políticos do deputado.
Havia muita turbulência e disputas políticas desde o ano de 1830, quando
surgiram inúmeras revoltas de escravos, sedições e rebeliões por todo o
império. Em Minas Gerais, a
província mais rica e com o maior
número de escravos, a incidência de revoltas e criação de quilombos foi maior. A
revolta de Carrancas, assim chamado o massacre da família Junqueira, teve como
motivação, além da insatisfação com os maus tratos, a influência do grupo
político que tomou o poder na capital da província, principalmente quando divulgou
o boato de que teriam libertado os escravos em Ouro Preto e que os escravos de
Carrancas conseguiriam não só a
liberdade, mas também ficariam com as propriedades rurais de seus senhores. O boato, que soava como música para os
sofridos escravos, incentivou o desejo
de liberdade e mais que isso, o sonho da posse das terras. Aqueles que tomaram
o poder em Ouro Preto tinham especial interesse em desestabilizar os
governistas que se mudaram para São João del Rei e ali instalaram a sede do
governo legalista. Alvo perfeito para uma rebelião de escravos. Além do mais, o
deputado Gabriel Junqueira era grande proprietário de terras e comerciante que
controlava os caminhos para o sul de Minas em direção à corte do Rio de
Janeiro. Com isso angariou inimizades, pois aquela rota era essencial aos
negócios de todos que produziam alimentos para o abastecimento interno.
A chacina começou no dia 13 de maio de 1833 e se estendeu para a fazenda vizinha, pertencente ao irmão do deputado. Ali mataram todos que ali se encontravam. Partiram para fazenda Jardim, próxima à cidade de Luminárias, mas foram recebidos à bala e se dispersaram, pois o proprietário já tinha sido avisado da chacina nas duas outras fazendas. A Guarda Nacional, criada em 1831, apenas dois anos antes e com a finalidade de manter a ordem pública em cada município, foi mobilizada e partiu de Lavras um pelotão de 44 membros com farta munição. Em 20 de maio encerrou-se a rebelião com o saldo de trinta escravos presos, um morto e onze feridos. Nove membros da família Junqueira foram assassinados pelos escravos revoltosos. Segundo o historiador Marcos Andrade (16), em dezembro de 1833 e abril de 1834, dezesseis escravos revoltosos foram enforcados em praça pública, tornando-se assim a Revolta de Carrancas o movimento de rebelião com a maior condenação coletiva, com pena de morte, em toda a escravidão brasileira. Politicamente, a repercussão foi tão grande que originou o projeto de lei nº. 4, de 10 de junho de 1833, que punia com mais celeridade a rebeldia escrava. Esse projeto se tornou lei em 1835 e serviu para o julgamento e condenação do escravo Joaquim Congo, que assassinou um fazendeiro em Lavras no ano de 1838, como se verá a seguir.
2.3- A
execução do escravo Joaquim Congo em Lavras
A segunda história da
violência escravocrata em Lavras aconteceu na tarde de 05 de dezembro de 1838,
quando o escravo Joaquim Congo, de 28 anos de idade, assassinou o fazendeiro
José Pimenta, o qual lhe dera uma surra pela manhã. O corpo do fazendeiro,
totalmente desfigurado por golpes de enxada, foi encontrado numa mata próxima e
levado de
_______________
(16) Andrade,
M.F. As revoltas do Ano da Fumaça (1833): a revolta dos escravos de
Carrancas e a
sedição militar
de Ouro Preto - 8º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, Porto Alegre (UFRGS), 2017. http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ . E-mail: marcos.andrade@pq.cnpq.br
enterrado no adro da igreja matriz de Santana de Lavras, a atual Igreja do Rosário. Preso, julgado por um júri popular foi condenado à morte. Interessante notar que o poder dos fazendeiros sobre a vida dos escravos era mais que onipresente, pois as leis eram elaboradas por eles próprios na Assembleia Geral Legislativa do Império. Joaquim Congo foi julgado com base na Lei número 4, de 10 de junho de 1835, sancionada pelo Imperador Pedro II, logo após o massacre de Carrancas, e tinha a seguinte redação:
“Lei número 4, de 10 de junho de 1835 - "Determina
as penas com que devem ser punidos os escravos, que matarem, ferirem ou cometterem
outra qualquer offensa physica contra seus senhores, etc.; ...
Art. 1º Serão punidos com pena de morte os escravos ou
escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem
gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua
mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a
administrador, feitor e as suas mulheres, que com elles viverem”.
Joaquim Congo foi executado em 26 de junho de 1839
e o juiz determinou na sentença dentre outras indicações, que:
“... em nome de Sua Majestade o Imperador, fosse (o
réu) levado pelas ruas públicas desta Villa com pregão e baraço, digo baraço e
pregão, até o lugar da forca, a ahí morrer de morte natural para sempre... “.
Assim, o réu foi escoltado pelas ruas de Lavras até chegar ao local da forca, na parte mais alta da cidade, onde hoje se situa o Cruzeiro, próximo às instalações da atual Copasa, ao lado da Rua Melo Viana. Para completar a demonstração de força dos
fazendeiros, seus escravos foram forçados a
participar do cortejo e assistir à execução para lhes servir de lição.
Impressionante a crueldade do ato, pois não bastasse o longo desfile pelas ruas
da cidade, o cortejo passou, ainda, pelo cemitério ao lado da Igreja do Rosário,
no exato lugar hoje ocupado pelo prédio do CrediReal. Ali, ao lado da igreja e
não no seu interior, era o local destinado ao sepultamento de negros, índios e
mendigos, segundo relatam historiadores de Lavras. Obrigaram o condenado a
entrar na cova para experimentá-la e dizer se estava de acordo. O cortejo
seguiu pela Rua Direita (atual Rua Francisco Salles) e a trilha até o alto da
pedreira, onde a forca foi instalada numa árvore. Este foi o único enforcamento
de escravo ocorrido na cidade. A certidão de óbito, lavrada pelo vigário
Francisco de Paula Diniz, assim registrou:
"Aos vinte e seis dias do mês de
junho de mil oitocentos e trinta e nove, foi sepultado no adro desta Matriz,
Joaquim Congo, escravo pertencente à herança de José Pimenta, de idade de vinte
e oito anos, por execução de sentença de morte natural e foi por mim mesmo
encomendado e dado os apontamentos no dito livro. O vigário Francisco de Paula
Diniz." -Livro de óbitos da Paróquia
- 1815/1843 - folha 173 v”.
2.4- Violência
e assaltos nos caminhos dos Salles nas Lavras do Funil
Como se viu pelos registros
históricos, de certa forma a escravidão em Lavras não deixou de ter o seu lado
violento, contrariando também a equivocada tese de Gilberto Freyre de uma suposta
democracia racial. Os historiadores Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala-
1933) e Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil-1936) difundiram essa
expressão mundo afora. Mas, se olharmos com atenção seus próprios textos vamos
encontrar contradições. Nelas estão nitidamente descritos os poderes incontestáveis da aristocracia rural, que tudo podia e em tudo mandava, inclusive nas vilas,
onde os senhores de engenhos e cafezais dominavam com mão de ferro o sistema
eleitoral e o legislativo, de onde saíam as leis. Esse mandonismo era muito
cruel para contra os escravos, fossem eles índios aprisionados para os combates
nas Entradas e Bandeiras contra as tribos resistentes à invasão de seu
território ou, mais ainda e com maior intensidade, com os negros. A escravidão
sempre foi violenta, a começar pela captura do escravizado no seu país de
origem, arrancando-o à força de seu ambiente familiar, seguindo-se a venda aos
traficantes e transporte em condições sub-humanas em navios negreiros que
cruzavam o Atlântico. Em numero infinitamente maior, os negros chegavam a se
rebelar contra a crueldade de seus senhores e feitores, fugindo mata a dentro e
formando os Quilombos, centros de resistência e independência da escravidão.
A vida do escravo foi uma
constante tortura física e mental e ele sempre, por razões óbvias, buscava a
sua liberdade. A escravidão no Brasil durou três séculos e o que resultou
depois de tanto tempo? Gilberto Freyre afirmou que havia a tal democracia
étnica ou racial, mas ao contrário, Arthur Ramos e outros intelectuais afirmaram
que houve apenas a valorização da mestiçagem e do elemento negro na formação do
país. Para eles a mestiçagem e a mistura razoavelmente equilibrada de costumes
tão díspares, originários de diferentes regiões africanas, incluindo as seitas
religiosas, impediram o preconceito racial no Brasil (17). Classificaram a tese de Gilberto Freyre como equivocada,
baseada em padrões dos E.U.A e a chamaram de “mito da democracia racial”, pois ela inexistiu no Brasil. Outra
autora, Lilia Schwarcz (18) também condena a expressão “democracia racial”
criada por Gilberto Freyre. Aliás, já no início deste capítulo falou-se da
aproximação do negro à família do seu senhor, seja pelo compadrio, frequência
às festas e cultos religiosos. Por parte do colonizador português houve a
predisposição para a miscigenação, o que não aconteceu nos E.U. A e outras
colônias inglesas, inclusive no próprio continente africano como a África do
Sul, onde
_______
(17) Caldas,
A.; Silva, N.G.P. A democracia racial no pensamento de Guerreiro Ramos.
Temáticas, Campinas,
29, (57): 88-116, fev./jun. 2021. Consultado
em 30/12/2021 In: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/tematicas/article/view/13921/10564
(18) Schwarcz,
L.M. Sobre o autoritarismo
brasileiro. 1ª ed.- São Paulo, Cia das Letras -2019, Pág. 17
até recentemente
predominava o regime do “apartheid”. Por aqui o racismo é dissimulado, mas há
muito preconceito de cor e isso prejudica os negros que são discriminados.
Outros autores afirmaram que Freyre,
aparentemente foi influenciado pelos relatos do cientista alemão Von Martius
(1794-1868), que visitou e percorreu boa parte do Brasil por três anos (1817 a
1820), pesquisando e pintando as paisagens tropicais da colônia. Martius também dourou a pílula, defendendo a
tese de que o Brasil era um país sem igual, onde se misturavam gente e povos. Todos
que defendiam essa tese distorceram a violenta realidade do sistema
escravocrata, descrevendo-a como “harmoniosa situação”, como se a miscigenação
dos brancos portugueses com as índias e negras fosse algo natural, pacífico e
consensual. Não foi, pois, a dominação daquelas escravas foi mais que violenta,
cruel. O autor de Casa Grande e Senzala esqueceu-se de que as raízes da
colonização portuguesa no Brasil foram totalmente opostas à dos ingleses na
América do Norte. Os ingleses emigraram com famílias inteiras e ao chegarem à
colônia tiveram como primeira preocupação construir escolas e igrejas para suas
famílias. Os portugueses, ao contrário, aqui chegaram, em sua maioria,
solteiros em busca da aventura de enriquecimento rápido com a exploração dos
recursos naturais, especialmente o ouro e a aventura dos imigrantes solteiros
incluía a miscigenação. Freyre romantizou a situação, falando de miscigenação
pacífica, porém, imaginar que esse entrelaçamento com as mulheres indígenas e
negras foi pacífico, por vontade própria das escravizadas, é minimizar e romancear
a situação de completo domínio do escravizador e jugo das escravizadas. A escravidão
é de todo condenável, pois fere o direito à liberdade e a despeito de uma certa convivência pacífica nas pequenas e médias fazendas do sul de Minas, houve
também excessos de maus tratos contra os escravizados. As rebeliões e fugas,
com criação de quilombos em locais mais distantes das fazendas são provas
irrefutáveis da reação dos escravizados. Hoje, mais distante no tempo e com novos
trabalhos de pesquisas sobre o regime de escravidão e racismo, tem- se no
Brasil uma visão mais realista que nos leva a discordar da teoria da democracia
racial. Por outro lado, é preciso entender que Gilberto Freyre ao formular esse
conceito e descrevê-lo em suas obras de 1930, levou em conta apenas a situação
dos conflitos raciais nos EUA iniciados na década de 1920. De fato, ali
existiam leis raciais discriminatórias. Negros não podiam frequentar ambientes
dos brancos, sequer o transporte publico, igrejas e escolas, o que gerou muita
tensão e acabou por provocar conflitos sangrentos nos anos de 1950/60. Este
autor trabalhou na década de 1970 em Michigan, berço da indústria
automobilística dos EUA e ali pôde, de fato, sentir e presenciar as tensões
raciais pós–assassinato de Luther King, ativista negro que pacificamente obteve
muitas conquistas sociais para seus compatriotas negros. A tensão racial era
uma constante na universidade norte-americana onde trabalhei, pois ali as centrais
sindicais, a maioria de negros, eram muito ativas e praticavam o racismo
reverso, ódio aos brancos. Tempos conturbados naquela nação, porém as
diferenças para o Brasil se encerravam ali, naqueles distúrbios com constantes
manifestações populares, pois embora por aqui não existissem leis semelhantes
às dos E.U. A, a escravidão por si mesma é condenável, aqui como lá.
2.4.1 –
Efeitos e resquícios da violência na
Escravidão em Lavras
Não bastasse a situação da
escravidão, que por si própria gerava muita insatisfação e às vezes revoltas
com sangrentos levantes, havia ainda nos caminhos de Lavras a presença de
assaltantes, negros que viviam aquilombados em diversos locais. Os caminhos das
trilhas que ligavam os povoados próximos à cabeça da Comarca do Rio das Mortes
(S.J.D.Rey) e às cortes da província e da colônia estavam infestados de
salteadores. O medo de se viajar por aquelas paragens já era antigo, pois
segundo registros do Arquivo Público Mineiro pesquisados pelo historiador
Nemeth-Torres (19), o capitão Francisco
Bueno da Fonseca, afirmou às autoridades da província, em 1737, que “... não se
atreveria a descobrir ouro por aquelas paragens na vizinhança de Ibituruna,
pois estavam infestadas de calhambolas (quilombolas) que salteavam os caminhos
e casas dos moradores e por isso lhes estorvavam o sobredito receio”.
O medo de assaltos por
escravos fugidos era tanto que o bispo de Mariana acabou por aprovar a mudança
da paróquia de Carrancas para a vila de Lavras, mais populosa e cujos
habitantes temiam percorrer as seis léguas que as separavam, para assistirem
aos cultos religiosos, especialmente os da semana santa. Some-se a isso a
revolta de Carrancas com a chacina de nove membros da família de um poderoso
fazendeiro e a condenação e execução dos 17 escravos criminosos e mais, o outro
caso do escravo Joaquim Congo também enforcado no alto do Cruzeiro e com
direito a show de desfile pelas ruas da vila e ainda a macabra cena de se obrigar o escravo a
se deitar na cova e dizer se estava adequada e tem-se um quadro de total terror
e pavor de se andar sozinho pelas estradas rurais de Lavras.
Por
outro lado, a decretação da abolição da escravatura não foi suficiente para
resolver a insatisfação e estancar as constantes revoltas dos escravos. Os
negros, recém-libertados foram abandonados ao relento, deixados à própria
sorte, literalmente, sem abrigo e sem comida. Muitos sequer tinham nomes, simplesmente
carregavam o nome do patrão ou da fazenda onde trabalhavam. Quantos negros,
hoje, conseguem levantar suas ancestralidades? Não conseguem avançar mais que
duas ou três ascendências e se deparam com a falta dos registros de posses de
escravos. Temendo pedidos ao governo de indenizações pela perda de escravos, o
todo poderoso ministro da Fazenda, Rui Barbosa, mandou queimar todos os
arquivos dos “Registros de Posse de Escravos”. Por essas e outras razões, os
escravos e seus descendentes não tinham nomes, certidões, filhos registrados e
sempre caíam nas expressões comuns de escravo, cativo, negro forro de fulano de
tal, ou negro cabinda, congo e outras denominações, deixando claro a sua
condição de negro escravo ou ex-escravo. Até mesmo na questão da identidade dos
negros havia violência, pois muitos deles eram filhos bastardos dos senhores da
casa grande e por isso nem sempre eram registrados para não causar
“constrangimentos”. Mas, e o constrangimento das negras obrigadas a coabitar,
violentadas por seus senhores? Vidas negras importam, como diz o slogan
norte-americano contra a recente violência racial naquele país. Por aqui, após
a abolição, os negros tiveram que construir suas próprias identidades, adotaram
sobrenomes da natureza ou de santos de sua devoção ou até mesmo de seus antigos
senhores. Ainda assim, mesmo com a decretação da abolição, alguns permaneceram
junto aos seus senhores quase na mesma condição de escravo, mas a maioria
fugiu das fazendas, amontoando-se nas periferias das cidades. No Rio de Janeiro
o início das favelas se deu um pouco antes da abolição. Foi em 1870 com o término da guerra do Paraguai,
quando os negros, que eram a maioria dos soldados (daí a origem do apelido de
“macacos” que os paraguaios deram aos brasileiros. Os argentinos nos chamam
de “los macaquitos”), voltaram para ficar ao lado da corte onde pensavam que
seriam recompensados. Não havia lugar nem trabalho suficiente para eles e foram,
então, ocupar os morros da cidade. O mesmo aconteceu depois da abolição e as
favelas cariocas cresceram ainda mais.
_________
(19)
Nemeth-Torres, Geovani. 2018 op.
cit. P. 57
2.4.2- O porte de armas dos fazendeiros
Em Lavras não foi diferente do que aconteceu no
pós-abolição na corte do Rio de Janeiro e outras cidades. Os negros expulsos
das fazendas se instalaram precariamente nas periferias da cidade. Construíam barracos
de madeira e se viravam para o sustento da família, se é que tinham uma, pois
na maioria das vezes eram vendidos separados. Muitos caíram na marginalidade e
isso aterrorizava os fazendeiros, antigos senhores de escravos. Temiam ataques de
negros, isolados ou em grupos, como acontecia antes, porém apenas nas
proximidades dos quilombos. Mas, com a abolição os assaltos migram para todas
as estradas e periferias de cidades. Por
isso, a população urbana e especialmente os fazendeiros, nunca se aventuravam a
se afastar de casa, a pé ou a cavalo, sem que houvesse pelo menos um ou dois
acompanhantes e sempre munidos de armas de fogo na cintura ou mais comumente na
algibeira da albardana da sela de seus cavalos. Esse era o costume em Lavras, o
porte de armas por qualquer fazendeiro, especialmente quando se deslocava para
a cidade e tinha que atravessar os bairros da periferia, onde se acumulavam os
ex-escravos. Este autor participou nos anos de 1950, de alguns deslocamentos a
cavalo, das fazendas até a cidade, ou mesmo entre as fazendas da família e
ainda se lembra dos cuidados com o ritual do porte de armas de fogo para a
viagem. Era comum os fazendeiros treinarem seus filhos, a partir dos doze anos de
idade, no manuseio de armas de fogo para defesa e caça. Antigamente, pelo menos
até os anos de 1950, não faltavam em Lavras armas importadas, comercializadas
por tropeiros ou estabelecimentos comerciais. Havia espingardas cartucheiras
Beretta de vários calibres, a famosa e cobiçada carabina Winchester do papo
amarelo, calibre .44, pistolas Luger, Mauser e revólveres Smith & Wesson,
H.O e mais tarde Rossi e Taurus e outras mais antigas como as garruchas de um
ou dois canos.
Tantos
cuidados assim e o porte de armas pelos fazendeiros de Lavras faziam sentido. O
receio de assaltos era real e muito grande entre a população, senão vejamos: O
próprio governador da província de Minas Gerais, dom Lourenço de Almeida,
escreveu carta ao rei de Portugal, em 1730, reclamando dos constantes ataques e
roubos nas estradas por parte de indígenas e negros. Pedia, inclusive, a
aprovação da pena de morte (20). Tanto
era verdade que, um pouco mais tarde, em 1737, o capitão Francisco Bueno da
Fonseca, um dos fundadores de Lavras, escreveu ao governador informando que não
se arriscaria a andar em busca de ouro pelas paragens de Ibituruna, pois
estavam infestadas de negros fugidos que salteavam os caminhos e casas dos
moradores. Pouco tempo depois, em 1746, o governador enviou ofício às câmaras municipais pedindo ajuda para a formação de tropas para atacar o Quilombo do
Campo Grande, o maior de Minas Gerais e cujos reforços de tropas contaram com a
participação dos Bueno de Lavras. Essas campanhas contra os quilombos e o medo da população se estenderam até o final do século XVIII.
Quando os cientistas Spix e Martius passaram pela região de Lavras em 1818, com
sua expedição científica, estava claro e evidente o medo, verdadeiro pavor, que
os fazendeiros tinham por conta de possíveis ataques de negros quilombolas. Os
cientistas se impressionaram com aquele cenário de apreensão e medo da
população. Observaram e descreveram as características e os costumes das
pessoas típicas de Minas Gerais com seu comportamento de elevada autoestima,
prestativas, comedidas e sobretudo muito asseadas. Destacaram os viajantes
alemães que os fazendeiros só saíam de casa montados em mulas bem arreadas,
incluindo freios e estribos de prata, e ainda portando (grifamos) espada e arma de fogo (21). As mulas, que também
_____________
(20) Gomes, Laurentino. Escravidão: da
corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte e dom João ao Brasil.
Vol II. 2021. Rio de Janeiro: Globo Livros. 512p. pp 388-389
(21) Spix, J.
B. e Martius, C.F.P. (1824). Travels in Brazil, in the years 1817-1820. Vol. 2 London.
impressionaram
os cientistas, eram importadas de Sorocaba, entreposto de comercialização das
tropas vindas do Rio Grande do Sul.
Minas chegava a comprar dez mil muares por ano.
Como se viu, o receio de assaltos por parte de
escravos rebelados e escondidos nas estradas foi notado até mesmo por visitantes
estrangeiros na região de Lavras. Além dos embates do século XVII, que
chegaram a mobilizar tropas da província e com participação dos municípios, seguiram-se mais tarde,
já nos meados dos anos de 1800, os trágicos acontecimentos da chacina de
Carrancas e o enforcamento do escravo Joaquim Congo, no alto Cruzeiro, em
Lavras. Se antes tinham medo, agora, com essas novas escaramuças, os cuidados
aumentaram e era evidente que todos os fazendeiros se armaram para a proteção
de suas famílias e o patrimônio. Os Salles e Pádua, fazendeiros de Lavras, como
Antônio de Pádua da Silva Leite (1765-1849), filho do patriarca Manoel da Costa
Valle, e seus filhos Fortunato Antônio de Salles (1813-1877) e Saturnino de
Pádua (1811-1888), conheciam os relatos diretos de ancestrais participantes das
guerras contra os quilombolas e em seguida presenciaram os atos consequentes da
chacina de Carrancas, de1833 e a execução do escravo Joaquim Congo em 1839. Não
só esses três ancestrais conviveram com todos aqueles trágicos acontecimentos do
século XIX ocorridos em Lavras. Seus filhos Domingos Pereira de Salles (1850-1927),
meu bisavô e João de Pádua, nascido em 1844, também fazendeiros em Lavras,
tinham motivos suficientes para serem adeptos do porte de armas para se
defenderem, pois viveram bastante tempo ainda nos tempos da escravidão e das
revoltas escravas. Em alguns dos
inventários da família Salles, do século XIX, constavam na relação de bens as armas
de fogo como espingardas e pistolas. Portanto, os avós e nossos pais, nascidos
entre 1864 e 1920 (o bisavô Fortunato Antônio de Abreu, 1864-1954 e Nanato 1920-2019),
carregaram esses costumes herdados de seus respectivos pais, os quais tangidos
pelas circunstâncias eram obrigados a portar armas de fogo para defesa pessoal.
Este autor e vários de seus primos, que frequentavam as fazendas, também
adquiriram esse costume. Um deles, inclusive se acidentou nos treinos com
espingarda cartucheira, quando o tiro saiu, literalmente, pela culatra e
feriu-lhe gravemente o antebraço. Definitivamente, armas de fogo não devem
mesmo fazer parte dos costumes de hoje e felizmente saíram de cena já nos anos
de 1960/70, quando surgiram as modernas estradas asfaltadas e veículos mais
rápidos, além do que a situação dos descendentes de escravos já havia melhorado
um pouco. Cessaram, portanto as razões
para se andar armado pelas estradas rurais, costume dos tempos das rebeliões
escravas quando ninguém saía sozinho de casa, mesmo de uma fazenda para a outra
e não importava a distância, se três ou vinte quilômetros, viajava-se
acompanhado e sempre portando armas de fogo. Aliás, parece que a década de 1960
foi mesmo um período de mudanças em Lavras, pois além de cessar o costume do
porte de armas, encerraram-se as atividades do Clube de Tiro ao Alvo, cujo
stand de tiro se situava na Avenida Ernesto Matioli, em frente ao Corpo de
Bombeiros e o Fórum de Lavras. Este clube foi muito ativo e era mantido por
fazendeiros acostumados ao uso de armas e
adeptos do esporte de caça. Havia muitos adeptos do esporte de tiro ao alvo,
como o prof. Adolpho Moura, Anísio Alves de Abreu Filho e Gilvan de Souza que eram
frequentadores e exímios atiradores em alvos móveis, pratos lançados por uma
catapulta. Os dois últimos mantinham coleção de armas e possuíam um ônibus
especial adaptado para viagens de caça e pesca ao Pantanal, levando mais de
vinte cães das raças perdigueiro e pointer, usados na caça esportiva. Na
atualidade, já no início deste novo milênio, foi criado em Lavras novo clube de
tiro e caça, porém com finalidades estritamente esportivas e para
colecionadores, nada tendo a ver com as motivações do passado relativas ao medo
de ataques de escravos nas estradas rurais. Assim também em Brasília, o autor
praticava tiro ao alvo por puro lazer, talvez pelas reminiscências das caçadas
nas fazendas e lagoas às margens do Rio Grande. Introduziu e treinou os filhos
nessa modalidade de esportes, a partir dos 12 anos, e até conseguiram medalhas
em campeonatos nacionais.
Mas,
todos esses acontecimentos estavam inseridos num cenário de muita miséria para
os negros. Eram maioria no município, cuja economia girava em torno das lavouras,
especialmente o café, altamente exigente de mão de obra escrava. Com a abolição
da escravidão tiveram que abandonar as fazendas. Aqueles que foram morar à
beira das estradas, às vezes conseguiam, além de sua precária choupana, pequeno
espaço para plantar, colher e criar algumas galinhas ou mesmo um porquinho de
engorda para o sustento da família. Porém, para quem morava nas periferias de
Lavras, com casebres amontoados, isso não era possível e a fome era constante.
Este era o cenário de Lavras, pelo menos até os anos de 1960, conforme pesquisas
de campo aqui citadas.
Como se viu, as consequências
da violência contra os negros não se encerraram com a abolição da escravidão.
Em certo sentido até se acentuou, pois, se de um lado cessaram os açoites
físicos, por outro, acirraram-se as sequelas da alma ressentida, com a miséria
e a fome em razão, principalmente, do abandono a que foram relegados pela
sociedade e até mesmo a absurda negação de sua identidade civil. Tudo isso
contribuiu para empurrá-los para o analfabetismo funcional e a marginalidade. Grande
dívida social tem a sociedade brasileira para o reparo dessas injustiças
cometidas contra os negros. Ainda bem que no limiar do século XXI medidas
corretivas começaram a ser tomadas para mitigar os males de antes.
2.4.3- Consequências
da escravidão - racismo e preconceitos
Há racismo no Brasil? Difícil de responder. Se
considerarmos, no entanto, que o racismo é a herança de todas as relações
construídas durante séculos de escravidão, onde o negro era comprado e tido
como instrumento de trabalho e o branco europeu, o português, considerava
injurioso e indigno o trabalho braçal, de fato havia discriminação racial no
Brasil. Porém, essa discriminação racial tinha como base a equivocada crença de inferioridade das raças escravizadas,
incluindo costumes, valores e comportamentos. Ainda que integrados à família do
senhor dos escravos, o negro até chegava a gozar de simpatia. Porém se criasse
algum problema era logo enquadrado como negro, escravo trabalhador braçal,
seguindo-se adjetivações pejorativas. Este conceito de trabalho, reservado
exclusivamente a escravos, felizmente não mais perdura. Entretanto, em recente
passado ainda presenciamos tratamentos semelhantes dispensados aos negros. Junte-se
a isso a falta de escolaridade e a subalternidade no trabalho e tinha-se um
ambiente propício à continuidade da discriminação do período de escravidão que,
diga-se, durou mais de 300 anos. Felizmente a situação começou a mudar com leis
positivas e maior educação do brasileiro em geral. Em nada, mas nada mesmo e
comprovado cientificamente, se baseia
a equivocada crença de inferioridade
das raças escravizadas (grifo nosso). Não gosta do nariz mais achatado da raça
negra? Os padrões internacionais elegeram como modelo de beleza o nariz fino da
raça que tem o crânio dolicocéfalo? Ora, ora, por que tamanha ignorância
científica dos adeptos das falsas teorias racistas? Seriam elas baseadas apenas
em valores estéticos? Como engenheiro gostamos de citar e comparar pesquisas da
área de mecânica dos fluídos. Está demonstrado e comprovado que tubos
estreitos, de menor diâmetro, comprimem e aquecem o líquido ou o ar neles
injetados sob pressão. Ora a respiração humana o que é, senão a sucção (pressão
negativa) do ar através das fossas nasais? Então..., para os esquimós, ou os
moradores das gélidas regiões nórdicas, é certo que eles tenham “dutos nasais”
mais estreitos, pois “aquecem” um pouquinho o ar gelado que respiram. Se eles
se mudarem para a África, de clima seco e tórrido, ou mesmo para Teresina, no Piauí, onde temperatura diária é de 40/42º C e nem
se pode abastecer o avião depois das onze horas da manhã (perguntei isto ao
comandante do avião e a resposta técnica: sujeito à evaporação e explosão do
combustível), os esquimós teriam o ar aspirado com mais calor e desconforto. É
por isso que os habitantes dos trópicos, no caso os negros, têm as fossas
nasais mais alargadas. Portanto, nesse quesito fisiológico ou de estética, nada
a ver com falsas teorias racistas. Não há espaço para racismo, somos iguais na
alma e nos direitos e deveres humanos. Qualquer alteração é produto do meio e
não racial entre os humanos. Há muito preconceito de cor e isso já é combatido
pela educação e leis modernas que coíbem e punem infratores.
O historiador
Laurentino Gomes ensina em seus livros sobre racismo que há dificuldades na
sociedade brasileira em acertar as contas com o passado de escravidão. Para
ele, a razão está no fato de que “a escravidão não é só um comércio de
gente. Ela é uma estruturação da sociedade, de poder, distribuição de recursos,
de terras, riquezas, de benefícios e de privilégios. Um grupo tem acesso a
riqueza, a privilégios, a confortos, à repartição dos recursos públicos, e
outro não”. Uma pena, pois segundo ainda o historiador, citando uma frase do padre Antônio Vieira, do finalzinho do século XVII: “O Brasil
tem o seu corpo na América, e a sua alma na África. Ou seja, a
essência, o povo, o elemento mais importante de constituição da sociedade
brasileira era de matriz africana e nós sempre valorizamos muito as riquezas físicas
nacionais, mas não o povo, sua gente”.
Passada
abolição começou outra série de problemas para os ex-escravos. Precisava-se de trabalhadores, porém
ex-escravo era perigoso sob a ótica dos fazendeiros. Então pressionaram o
imperador para abrir a imigração para estrangeiros. Vieram os italianos a
partir de 1890. Aceitavam-se quaisquer imigrantes, exceto negros e asiáticos.,
começando-se aí a discriminação oficial dos negros após a abolição. Antes mesmo
do decreto de imigrações veio a lei da vadiagem que tipificava a prática
pública da capoeira, esporte e dança de negros, como crimes. Não parraram por
aí as ações do governo, pois em novembro de 1890, Rui Barbosa, Ministro da
Justiça, determinou a queima dos arquivos oficiais de registros de escravos. No
século XX, Getúlio Vargas sancionou a
Lei de Contravenções Penais, de 1940, impondo pena a quem for
considerado vadio, ou seja o negro que perambulasse pelas ruas e sem emprego.
Em 1945, novamente Getúlio Vargas regulamentou a imigração, limitando-a aos
estrangeiros de “ascendência europeia”, em clara desconsideração à cidadania do
negro. Foi a Lei Afonso Arinos, de 1951, a primeira no Brasil a incriminar a
discriminação e preconceito racial, seguindo-se, em 1985, a lei que proibiu a
discriminação em elevadores, reforçada pela a Lei 7.716/89, tipificando como crime atos de discriminação
de cor, raça, etnia, religião ou procedência nacional. Somente mais tarde, em
2002, surgiu o Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH, que dá suporte às
políticas de discriminação positiva, as chamadas ações afirmativas, com vistas
a devolver a cidadania plena aos descendentes de escravos, culminando com a
aprovação a lei das cotas raciais nas universidades.
Com
certeza esses novos dispositivos legais têm condições de abrir o caminho tão
desejado para produzir as transformações necessárias à sociedade brasileira
que, por tanto tempo, negou o direito à cidadania plena aos negros, os escravos
de antes que eram destinados somente aos trabalhos braçais na construção do país
que, ao final, recusou-lhes a plena cidadania. Assim foram mantidos até
recentemente, nos mais baixos níveis da escala social, sem instrução e sem
empregos qualificados. Grande dívida social!
3- Os
Salles e o trabalho escravo nas fazendas e na cidade
Manoel
da Costa Valle, pentavô e patriarca da família, chegou a Lavras em 1750, justo
quando se esgotou o ouro das lavras faisqueiras de beira de riachos. O declínio
das atividades de mineração provocou profundas mudanças na economia da recém-criada
Capitania das Minas Gerais, que se separou de São Paulo em 1720. Nosso
ancestral, optou pela exploração agropastoril às margens do Rio Grande. As
condições geográficas e as terras férteis e virgens eram propícias ao
desenvolvimento da produção agropecuária. Outro fator que contribuía para o
sucesso do empreendimento de produção agrícola era a proximidade das terras da
fazenda com o estreitamento do Rio Grande, a chamada garganta do funil. Seus
cem metros de largura se estreitavam para apenas vinte, formando uma garganta
rochosa que facilitava a construção de ponte capaz de suportar carroças e
animais. Para lá convergiam os viajantes que precisavam atravessar suas tropas de
comboios que rumavam para o norte e centro-oeste. Assim, a vila das Lavras do
Funil, ou “arraial dos Bueno” se constituía em cruzamento natural das rotas da
estrada real. Por isso, se tornou importante produtora agropecuária para o abastecimento
do comercio de tropeiros que ali, obrigatoriamente faziam seu ponto de pouso
para descanso, alimentação da tropa de burros cargueiros e compra de víveres
para a longa jornada seguinte, de retorno à corte do Rio ou em sentido oposto,
em direção às províncias de Goiás e Mato Grosso ou ainda às comarcas mineiras
mais ao norte. Além da construção da ponte do Funil, a região também foi dotada
de um porto para embarque de mercadorias, o Porto Alegre, onde hoje é a cidade
de Ribeirão Vermelho. Ali havia também modernas embarcações para passageiros, barcos
a vapor, iguais aos do Rio Mississipi, nos E.U. A, de onde, aliás foram
importados. Esse porto, veio a ser mais tarde (1890) o principal ponto
comercial da navegação do Rio Grande. O porto se integrava à rede ferroviária
da EFOM, cuja estação de Ribeirão Vermelho foi inaugurada em 1888.
Por
conta dessa efervescência nas rotas do ouro dos caminhos reais, a população da
comarca do Rio das Mortes saltou de 49.485 em 1767, para 209.664, em 1821,
sendo respectivamente 26.891 e 71.147 escravos (22).
O arraial de Sant´Anna das Lavras do Funil já contava com 1.000 habitantes no
ano de 1760. Pouco mais de cinquenta anos depois, em 1813, o arraial foi
elevado à categoria de Freguesia e desmembrado de Carrancas e a população
registrada contava 10.612 almas. A imensa população da Comarca do Rio das
Mortes demandava considerável volume de produção de alimentos,
acrescentando-se, ainda o crescente comércio de venda de alimentos de
subsistência aos tropeiros a caminho do interior
___________
(22) - Castro, B.M. – Forjando Liberdades na
Encruzilhada da Escravidão: as alforrias cartoriais do termo de São João del
Rei (c.1830 – c.1860). Curitiba: CRV 2021, pág. 32-33
da colônia. Havia também os comerciantes que buscavam
produtos para outras praças, especialmente para a corte do Rio de Janeiro, de
onde também traziam sal, produtos manufaturados importados da Inglaterra e
especiarias. Não foi à toa que Manoel da Costa Valle escolheu a região de
Lavras para fincar raízes e estabelecer seu próspero negócio de produção
agropecuária. Aliás, outra eminente figura teve os mesmos motivos para se
instalar em Lavras, o missionário norte-americano Samuel Rhea Gammon, em 1892, quase
um século e meio depois de Manoel da
Costa Valle. O Dr Gammon também enxergou potencial na região devido a sua
estratégica posição geográfica que facilitaria o desenvolvimento. Foi assim que
instalou em Lavras uma Escola Internacional, transferida de Campinas e que se
transformou numa das melhores universidades do país, a UFLA. Da mesma forma e
quase simultaneamente, empresários da E.F.O. M- Estrada de Ferro Oeste de
Minas, compraram em 1892 a Fazenda do Engenho, localizada onde se situa a
cidade de Ribeirão Vermelho e que pertencia aos avós paternos deste autor. Ali
instalaram, em 1895, o complexo ferroviário com a estação, rotunda e ponte
metálica sobre o Rio Grande com ramal ferroviário estendido até a sede da
cidade de Lavras. Como se vê, o pentavô das famílias Salles, Pádua e Costa, não
foi o único a antever o potencial daquele ponto estratégico da região de
Lavras. O patriarca pioneiro acertou em seus prognósticos, pois a população
cresceu vertiginosamente e a demanda por alimentos aumentou, como de fato se
comprovou ao longo do tempo.
Por conta desse progresso havia necessidade de
elevada quantidade de mão de obra para tocar as lavouras e os rebanhos de gado
de leite e corte, suínos e até mesmo ovinos para produção de lã. A mão de obra,
como não poderia ser diferente naqueles tempos, era quase que exclusivamente escrava,
fosse na mineração do ouro ou na produção agropastoril. Lavras, se não teve tanto ouro como se esperava,
tanto que até a batizaram com um nome referente à mineração, foi privilegiada
geograficamente e também pela fertilidade do solo e abundância de água. Ponto ideal
para a logística das viagens exploratórias dos séculos XVIII e XIX havia na
comarca do Rio das Mortes e em especial no Termo da Vila de São João Del Rei,
intenso comercio de grãos, couros, tecidos grosseiros de algodão (tradição
também em Lavras até os anos de 1950/60).
Na fazenda dos pais e avós do autor havia rebanhos de ovelhas para
produção de lã e pequenas plantações de algodão (23).
Também eram produzidos nas fazendas de Lavras, com destinação ao comercio
tropeiro, a banha de porco, toucinho
defumado, farinhas, queijos, açúcar, carne de sol, reses e suínos para abate.
Nos
anos oitocentos, a cidade de São João Del Rei drenava grande parte da produção
agropastoril e funcionava como centro creditício para os fazendeiros promovendo
financiamentos para a produção e comercialização. Assim, com a crescente
produção agrícola, puderam realocar a força de trabalho dos escravos já ociosos
sem o ouro para garimpar. Por outro lado, as cidades oitocentistas ainda
carregavam o estilo português, já
_____________
(23) Silva, Paulo Roberto. Preciosidades de Minas: o Algodão, ovelhas, fruticultura e o papel da mulher na lida do campo, nos séculos XIX e XX, na região de Lavras. http://contosdaslavras.blogspot.com/2019/03/o-algodao-as-ovelhas-de-producao-de-la.html O autor, ainda criança, participou nos anos de 1950 de mutirões de preparação da lã, para a fiação nas fazendas da família. Os novelos de lã, depois de tingidos eram enviados para as tecelagens artesanais localizadas no distrito de Rosário, entre Lavas e S.J.D. Rei.
comentado
anteriormente, ou seja, para a maioria dos habitantes da comarca, a cidade
representava apenas o ponto de encontro nos finais de semana ou em dias de
festa. Quase todos moravam nas fazendas e os poucos moradores urbanos tinham
suas chácaras na cidade com enormes quintais onde produziam alguns alimentos,
especialmente a criação de galinhas. Era comum até mesmo a engorda de suíno para consumo
próprio, costume esse que perdurou até os anos de 1960/70. Quando Manoel da Costa Vale chegou às Lavras por volta de 1750, a
virada do perfil econômico já havia acontecido e logo iniciou as atividades agrícolas.
Não havia, ainda, naquele século XVIII nenhum
tipo de mecanização nas atividades agrícolas e tudo era feito por mão de
obra escrava e a importação de negros foi bastante elevada, principalmente em
Minas Gerais no período 1750/1850.
Nossos antepassados não fugiram à regra do país escravocrata. Nas grandes
fazendas era comum haver mais de trinta escravos. Estudos em inventários de 103
fazendas sanjoanenses, revelaram que mais da metade, 54 fazendas tinham mais de
30 escravos. Basta dizer que o café, produto que demanda grande quantidade de
braços para seu cultivo, exportou no ano de 1800 apenas 150 quilos produzidos
na província de Minas Gerais e representava apenas 1 ou 2% das exportações até
1830, saltou para 45% nos anos seguintes, dobrando em relação ao açúcar em
declínio. O café foi, portanto na segunda metade do século XIX, a salvação dos
fazendeiros, pois as exportações de
açúcar, algodão e tabaco haviam caído vertiginosamente. Manoel da Costa Valle e mais tarde seus
descendentes, Salles e Pádua, seguiram a mesma trilha dos fazendeiros da
região. Com terras férteis às margens do Rio Grande, tratou logo de instalar
lavouras para subsistência e pequeno engenho de produção de aguardente e
açúcar. Trouxe consigo o costume português de consumo de frutas de clima
temperado e seus deliciosos doces, como o marmelo, figo, pera, pêssego e
outras. Para completar, descobriu que a deliciosa goiaba, fruta nativa, se
prestava também à fabricação de doces e geleias em substituição ao marmelo
ainda inexistente por aqui, mas abundante em Portugal, de onde importou algumas
mudas de marmeleiro, iniciando assim a tradição dos lavrenses de sempre cultivar
essa deliciosa fruta em seus pomares domésticos para produção de geleias e
marmelada.
Manoel
da Costa Valle também cultivava em suas fazendas o fumo, que tinha grande
procura e o algodão para produção de fibras para tecidos. A criação de ovelhas
também era outra tradição portuguesa, para produção de lã e confecção de
colchas que aqueciam no rigoroso inverno montanhês do sul de Minas. O Rio
Grande, piscoso por natureza, fornecia o pescado, as curimbas, piracanjubas e
dourados em abundância. Em 2016 visitamos as fazendas do Meio e do Açude,
propriedade dos Salles e posteriormente transformada em pousada e lá ainda
encontramos os pequenos açudes e tanques, de água corrente e límpida, que
serviam para a colocação dos peixes recém-pescados no rio e usados para a
alimentação e venda aos viajantes de acordo com a demanda. Some-se a tudo isso, ainda,
a criação de gado, muares e principalmente de suínos, responsáveis pela
produção de banha e carnes cosidas e armazenadas em latas de 18 litros,
conservando-se por três meses, sem nenhuma refrigeração ou aditivos químicos.
Havia ainda na fazenda a produção de aguardente, açúcar e rapadura, produtos
que associados à farinha de mandioca (cultivo indígena e logo absorvido pelos
portugueses) e mais tarde o café produzido em grande escala. Assim, produzia-se
tudo que um viajante tropeiro necessitava para a longa travessia dos sertões
das gerais rumo ao interior. Evidente
que todas essas atividades das fazendas dos Salles exigiam grande número de
escravos para que se mantivesse uma escala de produção comercial.
costume
trazido para Minas pelos paulistas (24). Para tantas e
intensas atividades agrícolas, os fazendeiros tinham que investir pesado na
aquisição de escravos. Saint Hilaire descreveu, em sua viagem de 1822 pelo vale
do Paraíba, que os fazendeiros gastavam todas as suas rendas na compra de
escravos e estes se dividiam em trabalhadores da lavoura, condução de carros de
bois, tropas de burros, cuidados com o gado de leite, aves e porcos para
produção de banha, carne e toucinho. A produção desses alimentos básicos,
utilizados na subsistência e venda aos tropeiros viajantes, era bastante
intensa em Lavras, pois ali era ponto de parada obrigatória para descanso e
reabastecimento da tropa.
Não eram muitos os escravos da família Salles, embora ocupassem grande faixa de terras ao longo de ambas as margens do Rio Grande e depois subdivididas em várias fazendas, conforme registrou o historiador Marcio Salviano Vilela (25). Sobre a relação numérica de escravos dos Salles ainda não foi possível encontrar dados que cubram todo o período desde a chegada à Lavras de Manoel da Costa Valle, nem mesmo nos poucos testamentos deixados a herdeiros. Mas, pelos relatos de parentes nascidos entre 1895 e 1920 e a presença dos descendentes dos escravos nas fazendas dos Salles, não restam dúvidas que a quantidade deles foi limitada. Em 2016 o autor entrevistou o mais longevo membro da família Salles, Fortunato Pereira Sales Filho (1920-2019), conhecido por Nanato, tendo falecido aos 99 anos de idade. Era filho de Fortunato Pereira de Salles e neto de Domingos Pereira de Salles (1850-1929) e Lucinda Maria de Jesus Salles. Nasceu na Fazenda do Meio, de propriedade de seu avô, onde passava temporadas e viveu a maior parte de sua vida na fazenda Três Barras, onde constituiu família. Relatou ter convivido com filhos de escravos, com os quais brincava e pescava no Rio Grande.
Nanato - Fortunato Pereira Salles Filho,
aos 96 anos, com o autor e Anizio Pereira da Silva. Nascido em 1920, conviveu
com filhos de escravos na fazenda do Meio e depois nas Três Barras, onde se radicou.
Memória viva, lúcida, contou-nos diversas passagens de sua vida na companhia de
descendentes
de escravos que com ele trabalhavam nas
fazendas.
Foto do autor - 2016,
Lavras,
Segundo
Nanato, existiam vários descendentes de escravos na fazenda de seu pai e outros
parentes, na região de Ribeirão Vermelho e Perdões, principalmente nas fazendas
do Meio, Açude, Limeira e Barreiro. Alguns desses descendentes de escravos se
mudaram para a região das Três Barras, onde já moravam alguns Salles. Ele próprio
levou um deles para a sua propriedade rural. Confirmou que os descendentes de escravos tinham
habilidades
_________
(24)
Del Priori. Mary. Histórias da gente
brasileira: volume 2: Império. São Paulo: LeYa, 2016. 520p. pp58-
83
(25)
Vilela, Marcio Salviano. Minha Aldeia, a pérola do Rio Grande. Indi-
Editora, Lavras 2014. 736p.
específicas,
uns eram carreiros, outros balaieiros, carpinteiros, ferreiros e vaqueiros mas,
a maioria trabalhava nas lavouras de milho, arroz, feijão, café, algodão e fumo
cuja produção era tradição entre os Salles. O fumo era comercializado para
outras cidades do sul de Minas, de onde vinham os compradores, especialmente de
Itanhandu. As produções de algodão e lã de carneiro eram usadas para a
tecelagem de colchas. Além dos Salles, todas as fazendas das regiões das Três
Barras, Fábrica Velha, Criminoso, Cervo , Ribeirãozinho tinham camaradas
descendentes diretos de escravos, informou Nanato. Na fazenda das Três Barras,
de Amanda Custódia de Abreu (Samanda), avó paterna deste autor, havia também
alguns descendentes diretos de escravos, já citados, conhecidos de Nanato e com
os quais também convivemos.
4- Os anos de 1950/60 e as influências da escravidão em Lavras
A
escravidão em Lavras teve acontecimentos marcantes como as revoltas descritas anteriormente.
No entanto, predominaram as características próprias do lugar, com fazendas de
médio porte, com até dez escravos na propriedade onde moravam os próprios
fazendeiros e suas famílias. Castigos e torturas para escravos revoltosos eram acontecimentos
mais comuns nas efervescentes capitais de províncias como Ouro Preto, ou mesmo
São João Del Rei, cabeça de comarca. Embora tivesse havido um pelourinho em
Lavras, seu uso não era frequente, a julgar pela escassez de registros. Há que
lembrar que as torturas de escravos eram mais comuns em grandes fazendas, cujos
senhores moravam fora e deixavam os escravos, em grande número, sob o comando
de feitores, verdadeiros carrascos que exigiam esforço desmedido dos cativos. Nada
mais natural do que desejar e buscar a liberdade, livrando-se do jugo da
escravidão e seus cruéis castigos. Mas, a maioria das fazendas de Lavras, pelo
menos
Pelourinho- Negro no tronco.
Castigo publico com açoites.
Foto: Biblioteca Publica de N. York. Gravura de Debret, em Viagem pitoresca e histórica ao Brasil- 1834.
a partir da
segunda metade do século XIX, era de tamanho médio com menos se dez escravos e
diretamente administrados pelos próprios donos que não tinham interesse em
criar conflitos com seus cativos. Assim, os relacionamentos com os negros eram pacíficos,
em sua grande maioria, criando-se até mesmo laços afetivos. Convidavam seus
senhores para apadrinhar filhos e frequentavam os cultos religiosos na fazenda
ou na cidade e tudo isso como forma de agradar ao poderoso senhor das terras e
de seu destino. Também promoviam festas como a congada, folia de reis, festa do
Divino Espírito Santo e outras do calendário religioso, sempre buscando agradar
e se aproximar socialmente dos fazendeiros, seus senhores absolutos. Na família
Salles, já na primeira metade do século XX, havia grande integração dos homens
em atividades esportivas com pelo menos dois times de futebol registrados e que
disputavam campeonatos regionais. Outra forma de aproximação social dos
escravos era manter a esposa
ou filhas trabalhando na cozinha da casa grande. Assim, criavam-se vínculos afetivos com toda a família do fazendeiro. Além disso, os costumes negros trazidos de diferentes regiões da África tiveram influências no idioma e na culinária dos brasileiros. Um exemplo típico é o modo de falar dos mineiros do sul de Minas, colocando o diminutivo de forma carinhosa em quase tudo – um pouquinho, carrinho, pedacinho, comidinha, cafezinho e assim por diante. Essa foi uma das marcas da influência das amas secas que cuidavam da filharada da Casa Grande, pois no Brasil colonial a sociedade era rural e patriarcal com grande miscigenação, o que não ocorria em outros países. Aqui, os colonizadores chegaram solteiros, sem a família na maioria das vezes em busca da riqueza do ouro. Seguindo a tradição das fazendas, este autor conviveu, quando menino, com camaradas (empregados rurais) descendentes de negros e italianos que labutavam no eito ou na casa grande. Nesta estavam as amas de leite, cuidadoras de crianças e as encarregadas dos cuidados domésticos. No retiro (assim era chamado o curral de gado leiteiro) estava o negro Abílio que também levava o leite em latões na tropa de burros até a fabrica de laticínios da fazenda Criminoso. Os vaqueiros Maé e Paixão, negro alto, forte, de porte atlético, com enorme chapéu de palha e laço de couro trançado, pronto para laçar o animal que lhe fosse pedido, incluindo as ovelhas na época da tosquia, quando os meninos adoravam pegar no colo os cordeirinhos de lã macia e sedosa, enquanto a ovelha-mãe era tosquiada. Havia, ainda, em nossa fazenda, o folclórico negro, Lázaro Simão, de uns 40 anos, calvo, o melhor e mais requisitado balaieiro/cesteiro da região. Era capaz de tecer com taquaras de bambu os mais diversos tipos de cestos. Teceu um grande cesto, com formato de barco, chamado de rede de balanço. Dependurada no madeiramento da cozinha, a criança ficava na rede sob os cuidados da cozinheira.
Havia
também, entre os negros outro camarada, de origem italiana, Vitor Amaro. Olhos
azuis e pele muito clara, que o obrigava a usar um enorme chapéu de palha. Era
o carreiro, que cuidava dos bois de carro e os conduzia com maestria, bastando
apenas chamar, com vozeirão de barítono, o nome de cada boi e o mesmo o
obedecia fielmente. Nunca maltratava nenhum deles, nem mesmo nas dificuldades
de atoleiros ou íngremes subidas dos morros daquelas serras à beira do Rio Grande. Ao contrário, sempre os
agradava com uma espiga de milho ou sal que os animais tanto gostam. Seus
gritos no comando da boiada, o tintilar da vara de ferrão bem na cara do boi,
mas sem no entanto esbarrar no animal, o cantar do carro cheio de milho ou café
recém-colhido, eram música e alegria para os meninos aboletados no alto da
carga do carro de boi a descer e subir os morros à beira do Rio Grande ou das
cachoeiras do ribeirão Água Limpa.
Na fazenda Jacuba, pertencente à nossa família e situada às margens do Rio Grande, na divisa com a fazenda Maria Jerônima de Naná Pádua, herdeira do Sr Tonico de Pádua e bem próximo à cidade de Ribeirão Vermelho, trabalhava outro negro. Personalidade marcante, o Sr Benedito, alto, forte e também dono de vozeirão, sempre nos recebia com muita cordialidade e às vezes, com ele e sua família almoçávamos depois de hora e meia de cavalgada pelas estradas íngremes que cortavam as fazendas da Serra de Iraci Salles e da Cachoeira de Tonico de Pádua. Sr Benedito tinha gosto especial pelo feijão preto, costume dos cariocas que ele conservava. Por ser um feijão de sabor mais acentuado, os meninos não gostavam muito, mas sempre havia alguém a dizer-lhes que aquele feijão era especial e fazia engrossar a voz, tal qual a do Sr Benedito. Nas demais fazendas da família havia outros negros como o retireiro (aquele que cuida das vacas leiteiras) Tião Gaudêncio, Antônio carreiro, Euclides, Calixto, Vitão, que era um bom jogador do time Três Barras Futebol Club cujo “diretor” era o nosso avô, Anísio Gaspar, casado com uma Salles. Era o proprietário da fazenda, do campo de futebol e do apito do jogo, quando ele mesmo não estava jogando no ataque de seu time. Pelo lado feminino, havia a Tódia (Nelzira Afonso Gaudêncio), Fia e a famosa Sá Benedita e sua neta Maria e o irmão menor, Rogério, que chegou a ser adotado por uns tempos em nossa casa.
Na
cidade, além das que trabalhavam na casa, havia sempre a companhia de dona
Elzira, vizinha e madrinha de mais de uma centena de afilhados e que tratava a
todos com extrema doçura como se filhos fossem. Aliás, educou todos os filhos
até a faculdade, tornando-os profissionais liberais, professores e até oficiais
das Forças Armadas. Uma de suas filhas alfabetizou o próprio pai que era
militar. Isto sem contar os inúmeros negros da cidade com os quais nos relacionávamos,
como famoso açougueiro Tote e
seu irmão, Grilo, motorista do ônibus- lotação urbano. Mas, a fazenda era o nosso espaço, onde as crianças
passavam os meses de férias com os netos de escravos, alguns um pouco mais
velhos como as pajens e adultos que estavam sempre ao nosso redor, formando uma
imensa família, de puro amor e respeito recíproco, como era exigido pela
matriarca da família.
De certa forma todas essas pessoas nos marcaram e deixaram um legado de amor que ainda hoje, setenta anos depois, os lembramos com carinho. Interessante que até mesmo aquela negra que assustava as crianças, Sá Benedita, está entre as reminiscências da infância e hoje vemos o caso com outra lente. Como era inadequado o tratamento que se dispensava às crianças. Havia sempre o falso “terror”, incentivado pelos parentes como modo de se “educar” as crianças artiosas. Bastava falar que iriam contar tal traquinice à velha Benedita para os meninos se aquietarem, tal era o medo que causava em todos. Tinhas olhos embaçados e um único dente incisivo à mostra e ela gostava de exercitar esse “poder” sobre os pirralhos, “menino custoso”, como era chamado em Lavras. Havia sempre a promessa de que “o homem doido” ou Sô Juvenal iriam colocá-los num saco, sequestrá-los e levar para bem longe (crueldade... para com os miúdos). Aliás, encontramos a origem dessa lenda do “homem do saco” que sequestra criancinhas. Laurentino Gomes conta que a história é verdadeira, registrada na autobiografia de um escravo nigeriano, Olaudah Equiano, alforriado nos E.U.A. O ex-escravo relata em seu livro (26) que “havia a prática indiscriminada de sequestrar e escravizar pessoas em toda a região onde morava. Os traficantes levavam consigo grandes sacos, usados para imobilizar os sequestrados, especialmente crianças e adolescentes”. Ele próprio, com apenas dez anos de idade, foi vítima desse tipo de sequestro quando estava sozinho em casa, com os irmãos, enquanto os pais trabalhavam fora. Foi levado para a Inglaterra e ali, em 1776, comprou sua liberdade e passou a lutar pela abolição da escravatura e término de comercio escravo. Ora, tivessem nossos pais ou professoras do curso primário, conhecido a origem dessa história do terrível homem do saco que sequestra crianças na rua..., este autor e demais meninos dos anos de 1950 não teriam tido tanto medo dos juvenais, beneditas e tantos outros nome que circulavam em Lavras como seguidores daquele costume de 200 anos antes na distante Nigéria, colônia dos ingleses na África.
Certamente
os escravos que viviam em Lavras tiveram amigos e parentes que passaram por
situação semelhante, ou conheciam a história do sequestro de Olaudah Equiano,
de triste memória. Histórias de sequestros de crianças, tristes e verdadeiras,
mas que transpostas no tempo e no espaço serviam como “fakes” para amedrontar as crianças artiosas que as próprias amas
ou pajens negras cuidavam. Lavras era cheia dessas histórias contadas por
escravos e repetidas pelas mães aos meninos travessos, como o autor que era
chamado de “menino custoso”. Infância recheada de influências dos negros
ex-escravos e seus descendentes que representavam a metade da população da
cidade
_____________
(26)
Olaudah Equiano. The interesting
Narrative and other writings pp 37 e 47. In:
Gomes, Laurentino. 2019 op cit., p.
163
A
convivência em meio à família com os negros, durante toda a infância e
juventude, foi apenas uma das características marcantes nas Lavras da segunda
metade do século passado. Os meninos negros eram companheiros de caçadas,
pescarias, “peladas” de futebol, seguidas de mergulhos no ribeirão e lagoas às
margens do Rio Grande e tudo mais que se podia fazer com plena liberdade na
imensidão dos espaços das fazendas e da chácara na cidade. Já os adultos
estavam sempre solícitos a qualquer pedido dos garotos como apanhar frutas,
arrear os cavalos e acompanhar na natação nas enchentes dos ribeirões, com
jangadas improvisadas com os pseudocaules das bananeiras ou mesmo nas
cavalgadas pelos campos, serras e margens do Rio Grande onde, mais tarde,
promovíamos caçadas com as espingardas cartucheiras. Das mulheres negras
restaram as lembranças das amas, amigas, contadoras de histórias e que estavam
sempre prontas a cuidar da meninada com muito amor e carinho além de preparar
quitutes, arrumar nossas bagunças e cuidar dos demais afazeres do lar. Todos
eram mesmo considerados pessoas da família, tratadas com respeito e
compartilhavam tudo em igualdade com todos da família. Tanto assim que seus
casamentos eram realizados em nossas casas e seus filhos continuaram esse
relacionamento familiar.
Além
das doces memórias das traquinices e dos carinhos recebidos dos negros e negras
nos tempos de infância e juventude, mais tarde surgiram outros garotos negros
como Antônio Augusto, colega do 4º ano do Grupo Escolar Padre Dehon e que certa
vez presenteou-nos com um belíssimo e desconhecido fruto, o caju, bem vermelho,
de cheiro inebriante, saboroso e raro no sul de Minas. Ainda hoje quando saboreamos
aquela fruta, a imagem e o forte aroma experimentado há tanto tempo vêm à mente
a memória daquele negrinho amigo, comunicativo, alegre e esperto nas corridas. Era
imbatível no ”pique”. Ninguém o pegava nessas brincadeiras e por isso ganhou o
apelido de “mosquito elétrico”. Logo em seguida, em 1957, emigrou com seus pais
adotivos para o norte do Paraná onde se estabeleceram no mesmo ramo da produção
agrícola e de gado de leite. Ali, segundo alguns Salles que também imigraram
para lá, dispensou todos os cuidados a seus pais adotivos quando eles mais
precisaram e sempre gozou do carinho e respeito de toda a família e amigos.
Toninho Resende. O doce e alegre menino dos anos de 1950 faleceu recentemente
no Paraná, onde sempre morou com os Resende.
Mas,
o relacionamento com os amiguinhos negros não foi apenas de alegrias. Histórias
tristes também aconteceram. Um pouco mais tarde, já no colégio, perdemos dois
de três colegas negros que tiveram que
interromper os estudos para trabalhar e ajudar no sustento dos irmãos, conforme
descrito mais adiante. Porém, pode-se afirmar, com segurança que a convivência
entre filhos de fazendeiros de toda a região de Lavras e os camaradas das
fazendas, negros ou não, foi muito pacífica, embora nem sempre as condições de
trabalho tivessem sido as melhores naquela metade do século XX. Da mesma forma,
o acesso à educação foi muito dificultado pela carência generalizada de escolas
rurais. Nas diversas fazendas dos Salles/Pádua, na região das Três Barras,
Queixada, Cajuru do Cervo, Lagoinha, Boa Vista, Criminoso (27) e
Fábrica Velha, havia pelo menos uma escola primária em cada local. Embora
____________
(27) O historiador Nemeth-Torres, do
Instituto Histórico e Geográfico de Lavras – IHGL, publicou a ata de
inauguração da capela da Fazenda Criminoso, ocorrida em 1933, então pertencente
à família Salles. Ali funcionou, desde a inauguração da capela, uma escola
primária, vinculada à rede municipal ensino. In: https://www.facebook.com/groups/1630561507216102
faltassem condições, com grandes dificuldades próprias da época como a inexistência de professoras, e muitas eram leigas e quase sempre as mesmas abnegadas mulheres da família Salles, ainda assim alguns fazendeiros se esforçaram para manter o ensino regular em suas fazendas. Embora precárias e geralmente com professoras leigas, essas escolas eram supervisionadas pela municipalidade e nelas todas as crianças eram atendidas, filhos de proprietários de terras ou de simples trabalhadores rurais. Mas, ainda assim, a realidade para
os negros foi mais
dura, pois não puderam prosseguir os estudos na cidade. A consequência foi que
anos mais tarde nenhum daqueles meninos negros
da década de 1950 ocupou cargos na administração pública ou na iniciativa
privada (grifo nosso). Nunca tivemos em Brasília, com mais de vinte mil cargos
de assessoria, um único chefe negro. Nem mesmo algum professor que fosse negro.
Constatou-se o óbvio nas recentes pesquisas do MEC, confirmando a situação
educacional dos negros. Viveram o drama de ficar para trás e pior, inchando as
periferias pobres de nossas cidades, padecendo dos males do desemprego, das
drogas, prostituição, da marginalidade e tudo mais de ruim que possa existir
quando se falta a dignidade do trabalho remunerado. Por isso, conhecendo essa
realidade por meio a convivência com os negros nas fazendas, na cidade e nas
escolas, nos dedicamos com afinco na defesa, no MEC e no Palácio do Planalto, a
criação das cotas educacionais como política de inserção dos negros. Temos uma enorme
dívida social para com os descendentes
negros e aqueles que sempre conviveram com eles, fraternalmente, compreendem
melhor o alcance social dessas medidas sociais, ainda que paliativas.
Assim, em meio à família Salles, vivemos e convivemos com os camaradas das fazendas, ainda “meio-escravos” no século 20, pois até os anos de 1950 não havia salário para trabalhador rural. Permanecia o velho sistema das fazendas do sul de Minas, onde o empregado, chamado de “camarada”, morava numa pequena casa, sem água encanada e tampouco energia elétrica, facilidades inexistentes, aliás, até mesmo nas sedes das fazendas de café e gado de leite. Trabalhavam até o meio dia para o patrão no regime de plantio à meia. Recebiam a terra preparada, arada e gradeada, sementes e adubos. O camarada cuidava da capina e da colheita e a produção era dividida igualmente com o patrão. Ao redor de sua casinha ele mantinha pequenas plantações, criação de galinhas e um ou dois porquinhos de engorda que lhe produziam carne, o toucinho e banha para a cozinha. Escola para os filhos quase não existiam e assim muitos cresceram analfabetos, mas, lamentável e dolorosamente estavam prontos para o trabalho na enxada aos 12 anos de idade. Infelizmente esse era o costume nas fazendas da região de Lavras, até os anos de 1950/60 e os meninos analfabetos assim permaneciam pelo resto de suas vidas. Dura realidade para as crianças, filhos de negros nas fazendas do Brasil colonial escravocrata e cujos costumes e efeitos ainda se estenderam por quase todo o século XX.
Havia
na fazenda muitos outros negros e até italianos como as famílias Nicola, Amaro
e Magliano (Mariano, para nós). Pelo
lado feminino as negras Marieta, Tódia, Fia, e a famosa Sá Benedita e sua neta
Maria do Gaspar, nos deixaram as lembranças de amas, amigas, contadoras de
histórias e que estavam sempre prontas a cuidar da meninada com muito amor e
carinho, além de preparar quitutes, arrumar as bagunças e demais afazeres do
lar. Todos, homens e mulheres, eram mesmo considerados pessoas da família,
verdadeiros agregados que compartilhavam tudo em igualdade. Tanto assim que
seus casamentos eram realizados em nossas casas e seus filhos continuaram esse
relacionamento familiar de compadrio. Todas permaneceram agregadas à família até se
casarem e a ultima, até sua morte, no ano de 2020, aos 75 anos de idade e
cercada de atenção e carinho pela família Salles que a adotara desde criança.
As famílias sanguíneas dos agregados tinham também fortes vínculos com os
Salles. Frequentemente os visitavam e anualmente, também íamos às festas juninas
em suas humildes casas, geralmente situadas em fazendas vizinhas. Nunca ouvimos
de nossos pais e avós notícia alguma sobre violência com negros nas fazendas, o
que demonstra que o sistema escravocrata de antes da abolição e principalmente
após a Lei Áurea, foi mais brando no quesito violência. Em Lavras, podemos
afirmar que os descendentes dos escravos criaram vínculos de amizade e respeito
mútuos, na cidade e no campo, até porque eram poucos numericamente em cada
fazenda. Uma senhora negra, de extrema empatia e que era vizinha na cidade,
Dona Elzira, se gabava naqueles anos de 1950, que tinha mais de cento e vinte
afilhados e os padrinhos de seus próprios filhos eram cidadãos de prestígio, como
o Dr Lourenço Menicucci, Francisco Dessimoni e outros, demonstrando o grau de
proximidade e o orgulho da amizade entre negros e brancos na cidade de Lavras.
Mais
tarde, convivemos com outros negros, o garoto Rogério da Benedita, adotado por
nossa família e na escola primária com Antônio Augusto Resende. Para encerrar a
seleção parcial de nomes que marcaram nossas vidas, avançamos para a década de
1990. Em Brasília aconteceu um fato marcante na convivência com os negros. Acolhemos
o garoto Edson, de apenas dez anos, despachado de Luanda, capital de Angola,
por ordem judicial. Por coincidência, do mesmo país que mais forneceu escravos
para Lavras e toda Minas Gerais, conforme descrito no prefácio deste artigo.
Desta vez, diferentemente, como dito antes, o menino não foi sequestrado e nem
colocado em saco e entregue ao comandante do navio negreiro. Viajou com todo
conforto aos cuidados do comandante da luxuosa e enorme aeronave Airbus 330.
Ali estava mais uma oportunidade para sanar um pouco os erros do passado. Tinha
forte sotaque angolano, inibido, vestia roupas surradas e trazia apenas uma
sacolinha de papelão contendo quase nada. Efetivamente, todo apoio lhe foi dado,
mereceu toda a atenção de nossa família, professoras e vizinhos que dele se
compadeceram. Difícil foi conter a emoção, ainda mais quando contou que passava
fome e dormia em cima de árvores para fugir das minas enterradas pelo chão das
ruas descalças da periferia de Luanda.
Ainda
em Brasília tivemos contato e convivência com outros negros. O velho Carioca,
remanescente do Quilombo do Mesquita, na divisa do Distrito Federal com Goiás,
foi quem cuidou dos plantios de fruteiras da chácara recém-adquirida, em 1981.
Mais tarde visitei o Quilombo do Mesquita, onde os costumes negros eram os
mesmos de Lavras. Aliás, situado próximo aos municípios de Luziânia e Cristalina, terra das
minerações de ouro desde os anos de 1763, quando os bandeirantes paulistas
partiam do funil do Rio Grande, pela picada de Goiás iniciada pelos Buenos de
Lavras, a concentração de escravos tinha as mesmas características da região do
arraial de Sant`Anna das Lavras do Funil, onde já estava o patriarca dos Salles
com seus negócios a abastecer os viajantes e tropeiros que pegavam a picada
pata Goiás. Em 2016 este autor participou da Festa do Marmelo no Quilombo do
Mesquita (28)
e se sentiu em casa com os costumes dos negros, os mesmos praticados em Lavras.
O cultivo do marmelo naquele quilombo foi um costume que os portugueses também
deixaram aqui, tal qual em Lavras e todo o sul de Minas.
Fotos do autor – fazendo doce de marmelo com o orgulhoso quilombola. na Festa do Marmelo - Quilombo Mesquita, Luziânia-Go, 216
Finalizando o breve histórico sobre a
vida dos negros nas fazendas de Lavras e região, pode-se dizer que os casos
violentos de Carrancas e de Francisco Congo, foram exceções. A conduta dos
mineiros, pequenos e médios fazendeiros, em relação a seus escravos sempre foi
pacífica, pois eram bem integrados ao estilo de compadrio e se acercavam da
casa grande, com trabalhos e festas. Isto, no entanto, não descaracteriza a
violência da escravidão em si. Definitivamente, a escravidão no Brasil deixou
marcas indeléveis, tanto nos descendentes dos negros escravizados como em nós
que com eles convivemos nas fazendas e nas cidades. Os negros tiveram menos oportunidades na
educação e no trabalho e isso não foi diferente em Lavras, como se viu pelos
relatos apresentados. Desde o início da abolição em 1888, os negros lutaram em desigualdade
e mal se mantinham, subsistiam. A partir
de então, a.
________________
(28) https://contosdaslavras.blogspot.com/search?q=quilombo+do+mesquita
sociedade brasileira
reafirmou a sua hierarquização em classes que perpetuou os negros nos extratos
subalternos e o racismo passou a ser velado e, por isso, mais difícil de ser
combatido.
4.1- As favelas na cidade de Lavras, 1888 -
1968
Na segunda metade do século XIX os levantes de
escravos se alastravam por todo o Império e o governo já não suportava mais as
pressões externas e internas para por fim ao absurdo da escravidão. Assim, no domingo
de 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, libertando os
escravos. Porém, sem nenhum amparo aos libertos, os negros se viram abandonados
na estrada. Sem apoio algum, muitos permaneceram junto aos seus senhores, quase
na mesma condição de escravo, enquanto outros perambulavam pelos caminhos em
direção às cidades, vez que eram escorraçados das fazendas por onde passavam em
busca de comida e trabalho. Começou aí, com maior intensidade, o processo de
favelização das periferias das cidades. Foi assim também em Lavras. Os
ex-escravos tinham apenas duas opções, continuar nas fazendas ou ir para a
periferia das cidades. Grande parte foi para a cidade e os das fazendas
continuavam sem salários dignos, trabalhando expediente corrido, de seis da
manhã até o meio dia para o patrão e depois cuidando de plantar sua roça de
milho, feijão ou outra, no regime de “meia”. Esse sistema perdurou até a
chegada da “Reforma Agrária” de 1964, quando então os trabalhadores rurais foram
expulsos de vez das fazendas e mais uma vez, 76 anos depois da abolição da
escravidão, migraram para a periferia das cidades.
Todas
as estradas de chegada à cidade de Lavras foram tomadas pelos escravos expulsos
das fazendas, em duas ocasiões, em 1888 e 1964. Ao chegarem à cidade, onde
desembocavam as estradas, eles se acamparam definitivamente. As diversas saídas
da cidade de Lavras para as fazendas, como as ruas do Capim, Serrinha, Rosas, da
Cava, Chapada, Charquinho, do ribeirão Vermelho, da Ponte do Funil, Estação
Experimental, Aquenta Sol, do ribeirão Santa Cruz e Poço Bonito, enfim todas as
entradas da cidade foram tomadas pelas levas de retirantes expulsos das
fazendas. Alguns acampamentos foram avançando em direção ao centro da cidade,
como no caso da atual Rua Donato Bauti que era apenas uma trilha, conhecida por Rua do Fubá, uma cava de
tráfego de carros de bois e tropeiros que vinham da direção do Rosário,
Itumirim e Luminárias, passando ao lado do antigo campo de aviação e chegando
ao túnel da RMV, no final da atual Rua Otacílio Negrão. Todas essas entradas foram
ocupadas pelos negros e lá estavam, na década de 1950, quando este autor as
percorria a cavalo, em direção às fazendas. Morava ali, numa dessas precárias
casinhas, uma filha de escravos, nascida ainda nos anos de escravidão. Sá Malvina,
bastante idosa, era portadora de bócio endêmico, com protuberância na região do
pescoço, formando enorme papo que chamava atenção das crianças, e era assistida
por nossa família. O menino sempre ia levar cestas básicas com produtos vindos
da fazenda. Pôde assim, conviver e testemunhar a precariedade dos casebres, a
maioria de pau a pique, com paredes construídas com bambu trançado, amarrados
com cipó e reboco de barro misturado com estrume de gado. A cobertura com
telhas rústicas de barro, feitas pelos próprios negros nas olarias às margens
dos córregos e modeladas nas coxas (essa é a verdadeira origem da expressão
“feito nas coxas”). Aquele reboco primitivo apresentava-se com muitas
rachaduras e ali se alojava o mosquito transmissor da doença de Chagas,
conhecido por barbeiro. Assim nos ensinavam na escola e o menino ficava
impressionado com aquele perigo das casas de pau a pique à beira da estrada, a
poucos metros do túnel da estação Costa Pinto.
Ainda
no campo dos estudos das ciências agrárias e convivência com os descendentes de
escravos libertos, o autor participou, em 1967, juntamente com colegas do curso
de agronomia, de uma pesquisa domiciliar nas ruas periféricas de Lavras. Como
parte dos estudos da disciplina de Sociologia Rural, orientados pelo professor
Guaracy Vieira, fizemos o levantamento sociológico de toda uma rua, à época
conhecida por “saída para a Ponte do Funil”. Iniciamos as entrevistas
domiciliares logo acima da Estação de Lavras da RMV até o final da rua, no alto
do morro, onde hoje se situa o bairro COHAB. Situação mais que penosa dos
moradores. A maioria era de negros, sem
instrução, família numerosa, sem empregos, sobrevivendo de “bicos” em trabalhos
eventuais na cidade e nas fazendas , principalmente em época de colheita do
café. Incrível que mesmo depois de oitenta anos da abolição, já na terceira
geração, os descendentes negros, ainda enfrentavam
a mesma situação de antes, o abandono, a falta de empregos, o analfabetismo e a
ausência do poder público. Oitenta anos depois..., sim oitenta anos e a
situação pouco ou quase nada havia mudado. Ingrata escravidão que tolheu a
liberdade e discriminou os negros, relegando-os a segundo plano na sociedade
patriarcal brasileira do século XIX e quase todo o século XX, com profundos
reflexos em nossas vidas e o saldo de uma enorme dívida social.
5- A
Educação e a ascensão social dos negros em Lavras
Mas, nem só de violência viveu
a Vila das Lavras do Funil na época da escravidão, ou ainda no pós- escravidão.
A abolição se deu em 13 de maio de 1888, porém, a notícia oficial somente
chegou à cidade no dia 28 de maio, quinze dias depois, por meio de
correspondência do Palácio da
Presidência da Província de Minas Gerais, de Ouro Preto, datada de 16 de Maio
de 1888, que manda publicar e fazer cumprir a Lei nº 3.353, de 13/05/1888, em
virtude da qual foi abolida a escravidão do Império. Por outro lado, há que se lembrar de que mesmo durante a
escravidão e mais frequentemente após a abolição, muitos negros se destacaram
nas artes e ofícios na comunidade lavrense e gozavam de grande estima e consideração
de todos. Alguns passavam à condição de
agregados da família, pois tinham elevado grau de dedicação e com mútuo respeito.
Na família Salles foi assim com as amas de leite, auxiliares domésticas,
artífices de carpintaria, marcenaria, trabalhos manuais em vime e bambu
(confecção de cestos e balaios, esteiras para carros de boi) tão úteis nas
fazendas.
A influência da cultura negra nos costumes
brasileiros tem sido objeto de inúmeros trabalhos de pesquisa e tem se mostrado
muito importante em diversos setores, até mesmo na incorporação de palavras e
forma de se falar. O mineiro, por exemplo, se expressa com formas diminutivas
das palavras, o que segundo os filólogos tem origem nas amas negras, que
cuidavam das crianças dando-lhe a “comidinha, o brinquedinho...”. Na cidade de
Lavras, contam-nos os cronistas e jornalistas que muitos negros se destacaram
como líderes, ente eles o professor e jornalista José Luiz de Mesquita que
fundou jornais, criou a escola noturna e alfabetizou milhares de pessoas, além
de criar entidades filantrópicas. Foi um verdadeiro líder comunitário, tendo,
inclusive, iniciado no Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural- IPHAN, o
processo para o tombamento da nossa quase tricentenária Igreja do Rosário.
Havia também líderes negros que fundaram clubes de futebol, salões de dança e
ainda verdadeiros artistas da música que fundaram a banda Euterpe Operária.
José Luiz de Mesquita foi, segundo os historiadores Hugo de Oliveira e
Bi-Moreira, a expressão máxima da raça negra em Lavras, morreu pobre em 16 de
junho de 1967, deixando um legado de mais de cinco mil alfabetizados. Sua herma
encontra-se ao lado da Igreja do Rosário, a qual foi tombada pelo IPHAN, em
1948, por sua iniciativa.
Lamentável
foi, portanto, a proibição do acesso dos negros à educação desde o início do Império
e que perdurou por mais de cem anos. Nos anos de 1950, havia razoável número de
negros no curso fundamental, gratuito. Entretanto, à medida que as séries
escolares avançavam, escasseavam-se os negros nos bancos escolares. No curso
ginasial, a partir dos 12 anos, em colégio privado, portanto pago (não existiam
colégios estaduais, gratuitos em Lavras), havia cinco turmas de 50 alunos.
Apenas dez eram negros e desses, somente três conseguiram chegar ao final do
curso de segundo grau. Ainda assim, dois deles tiveram que interromper os
estudos por sete anos para trabalhar e ajudar os pais no sustento da família.
Coincidentemente os dois jovens negros, ex-colegas de colégio, foram alunos
deste autor, no quarto e último ano do curso de agronomia na UFLA em 1974.
5.1- As cotas raciais nas universidades
Diante dos acontecimentos pós-abolição pode-se
afirmar que se a Princesa Isabel tivesse logrado êxito em seu projeto
de indenizar os escravos, teríamos na atualidade outra situação social para os
negros. Muito melhor, com certeza, se tivesse havido a inserção de dois outros
artigos na Lei Áurea, o primeiro doando um pequeno pedaço de terras e o segundo
garantindo que a Educação seria para todos e obrigatória.
Foi cruel a
discriminação dos meninos negros desde o nascimento. Permaneciam analfabetos
nas fazendas e ainda que estivessem na cidade, eles eram apenas 4% (quatro por
cento) das matrículas colegiais dos anos de 1950/60. Somente 1,2% (um vírgula
dois por cento) conseguia concluir a universidade, ainda assim com anos de
atraso em relação a seus colegas de mesma idade. Isto, numa sociedade onde os negros
represenatvam quase 60% da população. Eles tinham que optar entre trabalhar
para comer ou estudar. Esta foi a lição mais clara sobre a desigualdade racial
que o autor pôde presenciar em Lavras. Uma desigualdade que nos dividia, separava,
apartava os amiguinhos, não só pela quantidade de dinheiro que permitia montar
casa na cidade e estudar nos melhores colégios pagos, pois inexistiam colégios
publicos, gratuítos, mas, também pelas oportunidades que nos eram oferecidas
desde então e ao longo de todo o tempo. Mas, por outro lado, felizmente, ainda
que muito mais tarde, 50 anos depois, entre 2003 e 2005, este autor teve a
oportunidade de contribuir para minorar a terrível situação do difícil acesso
dos negros à Educação. Integrou a comissão especial do Ministério da Educação,
onde trabalhou por 35 anos na Educação Superior, a qual elaborou as bases para
a Lei das Cotas Raciais nas Universidades (Lei 12.711/2012), reservando 50% das
vagas universitárias para os negros, vez que, o censo revelou que em 1997
apenas 1,8% dos jovens entre 18 e 24 anos, que se declararam negros, havia
frequentado uma universidade. Índice baixíssimo para uma população majoritariamente
negra em nosso país e sem chances de melhorias.
Em contrapartida a
aquele baixíssimo índice de diplomas superiores, bastou a criação da lei das
cotas raciais e já se verificou, em cerca de 20 anos de sua existência, um
salto bastante elevado no que tange a presença de negros na universidade,
representando quase 40% dos estudantes matriculados em 2020. Este percentual ainda precisa crescer
mais, pois os negros representam 56% da população brasileira. Talvez nossos
netos, daqui a cinco ou dez anos, encontrem e sejam atendidos por profissionais
negros, médicos, advogados, padres, professores de faculdades, dentistas, juízes,
engenheiros, empresários e tantas outras profissões liberais que lhe foram
negadas antes.
As cotas nas universidades vieram em boa hora para o Brasil, embora tardia, buscam corrigir a antiga discriminação, sentida até mesmo em Lavras, a terra dos ipês e das escolas. Aliás, os efeitos da discriminação pode ser sentido e medido em qualquer lugar. Em Brasília, o autor trabalhou por quase quarenta anos em meio a mais de vinte mil cargos de assessoria e nunca teve ou viu um único chefe negro. As cotas raciais nas universidades permitirão um grande progresso na tão desejada ascensão social dos negros. É incompreensível por que muitos brasileiros ainda acham que a lei das cotas raciais é injusta. Não é! Basta conhecer a realidade e essa se torna bastante clara para quem vivenciou e observou a situação dos negros desde os tempos de criança, passando pelas escolas, faculdade, empresas e órgãos públicos e ainda assiste, nos dias de hoje, manifestações de negros no país e no exterior, clamando por seus direitos.
Neste prédio da cidade de Caienne, Guiana francesa, participamos de jantar de confraternização de um congresso internacional sobre floresta amazônica (março de 1990). Da sacada do salão de festas, no segundo andar, presenciamos uma manifestação de negros, chamados de “creoles”, reclamando “liberté, liberte´ ” para uma das últimas colônias das Américas. Cento e sessenta oito anos (168) se passaram desde a nossa proclamação da Independência e ali os negros ainda clamavam “Liberdade..., Liberdade” para os visitantes de diversas nacionalidades, incluindo este autor, constrangido e triste por e recordar o passado.
A década de 1990 não foi das melhores nas minhas lembranças sobre escravidão. Foi iniciada com esse triste episódio de Caienne/Guiana e encerrada com o drama do menino angolano acolhido em minha casa.
Foto: internet
6- Conclusão
E como foi a escravidão em Lavras? Não foi diferente de outras partes do Brasil. No entanto, exceto as poucas exceções aqui descritas, a convivência com os escravos e depois com seus descendentes foi de certa forma tranquila, corroborando até mesmo a tese de Gilberto Freyre, aqui contestada, pois a boa convivência não apaga o crime da escravidão. Ao longo dos últimos setenta anos acompanhamos a lenta evolução social daqueles cujos pais trabalharam na escravidão e depois dela. Foi uma convivência prazerosa entre crianças e jovens brancos e negros. Não havia discriminação entre eles. Gostavam da natureza e brincavam como iguais, companheiros de verdade na tranquila e pacata vida no campo, de onde trouxemos doces recordações. Porém, mais tarde, ao chegar à cidade, sentimos a ausência dos meninos negros. Os pouquíssimos colegas de colégio e faculdade tiveram que sacrificar anos e anos de sua vida com o doloroso dilema de escolha entre trabalhar para comer ou estudar. Aquele reencontro na universidade, do professor com seus únicos ex-colegas negros que foram obrigados a abandonar por uns tempos a escola secundária, e então, quinze anos depois reaparecem como seus alunos no último ano da faculdade, foi um choque de consciência, um soco na alma. Despertou no autor a questão da enorme dívida social que a sociedade brasileira tem para com os negros. Tanta injustiça, as proibições de frequência dos negros à escola desde os tempos do Império, com leis expressas já em 1824, seguindo-se vários outros decretos cerceando-lhes o direito aos estudos e privilegiando a elite rural, em 1968 com a lei do boi que garantia 50% das vagas em cursos de agronomia, veterinária e técnicos agrícolas, exclusivamente para filhos de fazendeiros, muito antes do surgimento das cotas raciais em universidades. Porém, ainda que tardiamente, surgiu a lei das cotas raciais nas universidades. Um grande progresso, louvável ascensão social dos negros, tal qual intitulamos este capítulo, valendo encerrá-lo com a bela ilustração abaixo, mostrando os formandos da Universidade Afro-Brasileira, que desde 2010 trabalha na reparação histórica de séculos de segregação e injustiça social.
Não é fácil falar sobre a escravidão em casa. Não era! Agora tornou-se mais fácil quando se olha com amor aqueles que ajudaram o Brasil a crescer e hoje conquistam a sua completa cidadania, com os mesmos instrumentos que o eminente lavrense, negro, José Luiz de Mesquita fez desde o início do século XX: com a Educação!
Tomando emprestadas as palavras da ex-chanceler alemã, Angela Merkel, digo: Os crimes cometidos contra os negros e seus descendentes são e permanecerão parte da história do Brasil, e essa história deve ser contada repetidamente.
Finalmente, cabe registrar: O símbolo da
ascensão social dos negros em Lavras pode, com justiça, ser atribuído a uma
figura marcante, digna de homenagens, o educador, Professor José Luiz de
Mesquita. A comunidade reconheceu e concedeu-lhe grande honra, ao colocar seu
busto na praça central da cidade, bem em frente à Igreja de Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos, para a qual ele batalhou e conseguiu, junto ao IPHAN, o
tombamento daquele patrimônio cultural da cidade. Ali, naquela igreja funcionou
desde o ano de 1783 a primeira escola do Arraial de Sant´Anna das Lavras do
Funil e finalmente autorizada em 1792 pela rainha D, Maria, de Portugal. E hoje
passados quase 240 anos da
Façamos a nossa parte, sociedade e
governo, criando e executando políticas publicas consistentes que contribuam
para a ascensão social dos negros. E sabemos qual é o caminho, a Educação!
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- Autor:Domingo Martínez
Castilla/Universidade do Missouri - Ao germe o que é do germe: doenças
europeias e destruição da civilização andina. Tradução: Jaime de Almeida, doutor em História Social pela
Universidade de São Paulo e pós-doutorado pela Universidade de Paris I. E-mail:
jaimeida@terra.com.br . In: https://www.academia.edu/52562424/Ao_germe_o_que_%C3%A9_do_germe_doen%C3%A7as_europeias_e_destrui%C3%A7%C3%A3o_da_civiliza%C3%A7%C3%A3o_andina