Um cronista sempre
observa detalhes do dia a dia em busca de algo que possa lhe inspirar um conto,
uma história interessante que mereça ser compartilhada com seus amigos. Não é
diferente com o Menino das Lavras. Há dois dias uma amiga postou nas redes
sociais a foto de uma praça em ângulo de visada nunca antes mostrado por nenhum
fotógrafo de minha cidade natal. A praça, além de mostrar o espaço que leva o
nome de um parente, João Oscar de Pádua, mostra a lateral da imponente Igreja do Rosário, a primeira
da cidade, inaugurada em 1754, há 265 anos.
Impressionou-me aquele belo cenário, também emoldurado pelas quase
centenárias palmeiras imperiais que circundam o Colégio Carlota Kemper, mais ao
fundo. Amanheci dia seguinte, com um sonho diferente dos usuais, uma
arquibancada um pouco perigosa, na outra lateral daquela antiga igreja, junto
ao não menos belo, o Sobrado do Capitão Evaristo Alves, avô do nosso inesquecível
e admirado filósofo, escritor e poeta Rubem Alves. Despertado, não consegui entender
o contexto. Somente hoje, ainda em estado hipnagógico, acordei com o barulhão
de um helicóptero militar em voo rasante e veloz a cem metros de minha janela.
Foi então que compreendi o sonho da manhã de dois dias antes. A foto postada
pela amiga nas redes sociais havia disparado o gatilho do subconsciente que, em
sonhos liberou as imagens da infância e da adolescência gravadas para sempre na
memória cintilante, como definem os cientistas da neurologia. Pois bem, a
arquibancada perigosa existiu. Foi um palanque ali armado e que despencou com
as autoridades, fato presenciado pelo menino. O avião militar de hoje, com seu
brusco e inesperado barulhão de duas turbinas a jato fez me lembrar dos perigos
que corri nas mesmas arquibancadas da Igreja do Rosário e outra na Esplanada
dos Ministérios, aqui em Brasília.
Nunca
fui militar, nem tive parentes ascendentes nessa carreira profissional. Mas,
desde menino convivi com militares. Homens probos, pais de família exemplares, caráter
e patriotismo a toda prova. Foram assim, os sargentos Alcino, Vila Boas, Bahia
e Francisco de Assis, italiano de olhos azuis e maestro da banda militar, além
dos tenentes Arruda e Agnelo. Todos vizinhos moradores da mesma rua. Saíam cedo
de suas casas, impecavelmente uniformizados, portando pastas recheadas de
documentos e só voltavam ao final da tarde. Sempre nos cumprimentavam com
carinho e muitas das crianças se colocavam em posição de sentido e
prestavam-lhes continência, naquele gesto de cumprimento próprio dos militares.
Seus filhos eram os nossos amiguinhos de jogar finca, peladas de futebol no
campinho da Estação Costa Pinto, cavalgadas, caçadas e natação no córrego da
imensa chácara onde morávamos. Amizades que se consolidaram e ainda hoje nos
unem. Gostávamos, também, de ouvir à distância, todas as manhãs, o toque do
corneteiro que anunciava a chegada do comandante geral à sede do 8º Batalhão de
Infantaria, a pouco mais de um quilômetro. Também empolgava os meninos o rufar
dos tambores e acordes da banda de musica que desfilava pelo quartel ou mesmo
nas ruas da cidade, em preparação para os desfiles de 7 de Setembro. Não raras
vezes acorríamos à rua e muitas crianças saíam marchando atrás de pelotão. Éramos
tratados com carinho pelo militares e à chegada do portão do quartel, não raras
vezes convidados a adentrar ou ali mesmo, no portão e às vezes, recebíamos um
mimo, geralmente balinhas, trazidas do armazém de subsistência que vendia
alimentos a preço de custo para as famílias da tropa militar.
Nessa
sequência das doces reminiscências da infância, o desfile de 7 de Setembro era
o ponto máximo. Todas as escolas do ensino fundamental e do segundo grau
desfilavam diante da tribuna de honra, na praça central da cidade. Mas o ponto
alto era o desfile militar, o Tiro de Guerra 0264 e a Policia Militar. Não
havia criança que não se postasse ali no cordão de isolamento, bem em frente ao
desfile e ao passar o ultimo soldado, alguns corriam a desfilar logo atrás.
Assim o menino cresceu em meio a um ambiente respeitoso e de admiração aos
militares. Cultuou esse costume levando os próprios filhos aos desfiles
militares do dia da pátria. E parece que o espírito patriótico influenciou,
também, uma das filhas que se integrou às Forças Armadas, na carreira temporária
da primeira turma de oficiais femininas.
Aqui, na
capital da república, os desfiles militares eram mais constantes, pois, acostumada
a receber dignitários estrangeiros, sempre oferecia recepções com honras
militares, pompa e circunstância, em frente ao Palácio do Planalto. Salva de 21
tiros de canhão, subida da rampa palaciana, Dragões da Independência em saudação
com suas lanças, em meio à subida do Presidente da República acompanhado de
outro Chefe de Estado estrangeiro. Belíssimas e memoráveis cerimônias que
empolgam não somente as crianças, mas também a todo cidadão, orgulhoso de sua
Pátria.
As
solenidades de troca da Bandeira Nacional, na Praça dos Três Poderes, acontecem
a cada primeiro domingo do mês. A solenidade é revezada pelas três Forças,
Exército, Marinha e Aeronáutica. É um dos eventos cívico-militares mais
bonitos. Começa pelo ato chamado de incorporação da Bandeira, onde um batalhão homenageia
a bandeira, seguindo todo um ritual, iniciando-se pela execução da Canção dos
Expedicionários, seguida pelo Hino da Bandeira, enquanto os soldados em trajes
de gala entregam a bandeira nacional a outro oficial que a transporta
solenemente. Linda cerimônia, que às vezes conta com a presença do Presidente
da República.
No campo cultural os militares oferecem
verdadeiros espetáculos ao público em geral, quase sempre na semana dedicada ao
soldado, no mês de agosto ou mesmo na Semana da Pátria. Descobri isso de uma
forma um tanto inusitada, pois quase caí da arquibancada, na Esplanada dos Ministérios,
quando, à noite, assistia a um concerto da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional.
Executava-se a ópera “Abertura de1812” de Tchaikovsky quando, totalmente
inebriado pelos acordes da belíssima Marselhesa, hino da França, e o repicar
dos sinos de Moscou que cantavam a vitória dos russos sobre as tropas de
Napoleão, eis que pipoca um estrondo ensurdecedor por debaixo das arquibancadas.
Eram os canhões do Regimento de Cavalaria de Guarda que, em sintonia com a
ópera, disparavam os canhões, verdadeiros, que compunham a sinfonia. Se estava
flutuando com os embalos da sinfonia de sinos da vitória, literalmente voei com
o potente estrondo do primeiro tiro de canhão a menos de 30 metros, atrás das
arquibancadas. Nunca tinha assistido a uma performance com tiros ao vivo.
Surpresa mais que emocionante, ali a imaginar as tropas napoleônicas abatidas
pelo inverno siberiano e os sinos de todas as catedrais moscovitas a repicar
incessantemente. Tempos depois, tive o privilégio de tocar com as mãos, num
museu na França, aqueles mesmos canhões recuperados nas neves da Sibéria.
Nosso
subconsciente não falha, registra tudo e os fatos mais marcantes ficam para
sempre na chamada memória cintilante. Sob qualquer estímulo externo as imagens
brotam, ainda que em sonhos oníricos e à cores para nos deleitar a alma saudosa,
bem assim:
"Eu carrego
comigo uma caixa mágica onde eu guardo meus tesouros mais bonitos. Tudo aquilo
que eu aprendi com a vida, tudo aquilo que eu ganhei com o tempo e que vento
nenhum leva. Guardo as memórias que me trazem riso, as pessoas que tocaram a
minha alma e que, de alguma forma, me mudaram para melhor. Guardo também a
infância toda tingida de giz. Tinha jeito de arco-íris a minha. O pouco é muito para
mim. O simples é tudo que cabe nos meus dias. Eu vivo de muitas saudades. E
quem se arrebenta de tanto existir, vive para esbanjar sorrisos e flashes de
eternidade". Foi assim que se expressou
o pensador Caio Fernando de Abreu.
Pura verdade! Guardo também a infância toda tingida de giz. Tinha jeito de
arco-íris a minha, nos jardins da cidade. Militares?
Igrejas? Ah..., só tenho doces recordações deles e da infância colorida na
Terra dos Ipês e das Escolas. Obrigado, Lavras! Obrigado a seus filhos que,
mesmo distantes por mais de quatro décadas, ainda permanecem vivos a ponto de
me despertarem, em sucessivas manhãs, com sonhos coloridos de doces
reminiscências.
Brasília,
28 de setembro de 2019
Paulo
das Lavras
Praça João Oscar
de Pádua – Lavras MG, em reforma pela SELT.
Igreja do Rosário, tombada pelo Patrimônio Histórico de MG, inaugurada em 1754.
Em frente, o Jardim e ao fundo, as quase centenárias palmeiras imperiais que circundam
o antigo Colégio Carlota Kemper, outro patrimônio da cidade
Igreja do Rosário, tombada pelo Patrimônio Histórico de MG, inaugurada em 1754.
Em frente, o Jardim e ao fundo, as quase centenárias palmeiras imperiais que circundam
o antigo Colégio Carlota Kemper, outro patrimônio da cidade
Foto: Ana Pádua-
2019
Sobrado do
Capitão Evaristo Alves, imponência, ao lado da Igreja do Rosário, à direita.
Entre os dois prédios
armava-se o palanque politico que um dia desabou.
Foto: arquivos de
Renato Libeck
Fachada a da
Igreja do Rosário- Lavras 2015
Foto do autor
Com o sobrinho, um
capitão-Mirim da PM. Desfile de 7 de Setembro-Lavras.
Revivendo o
passado, marchando atrás dos militares em desfiles.
Foto do autor
2012
Salva de 21
tiros, saudando a chegada de Chefes de Estados Estrangeiros
Foto: Ascom- Presidência
da República
Troar assustador
dos canhões – Solenidade no QG do Exército- Brasilia
Foto - QGEx
Os
canhões de Napoleão, Praça des Invalides- Paris. Gelados, a menos
de
zero grau, como a relembrar a derrota no inverno russo de 1812. Não
há
como não imaginar e “ouvir”, ali mesmo, a célebre ópera de 1812,
de
Tchaikovsky, com a marcha da Marselhesa e
depois
os acordes das marchas russas comemorando a derrota do
Imperador
Napoleão, diante do tal “general inverno”, mais rigoroso que
aquele
gelado dia de dezembro de 2013 na capital francesa.
Paris,
13/12/2013. Foto
do autor
Minha oficial do
Exército, no QG/SMU-Brasília, com muito orgulho
Foto do autor - 2003