O
urubu, voa. E voa bonito, muito bonito. Não adianta achar que é ave feia ou até
mesmo agourenta, pois isso não vai diminuir a beleza de seu voo. Só quem voa de
avião, helicóptero, ultraleve, paraquedas, asa delta e parapente, sabe apreciar
a beleza e a técnica do voo do urubu. Técnica de voo? Sim, verdadeira
engenharia aeronáutica os urubus nos ensinaram. Seus voos planados em alta
velocidade e com pouca perda de altura, invejavam os humanos e suas máquinas de
voar. Desde que esse mundo é mundo os urubus já vêm de fábrica com os winglets na ponta de suas asas. Ah...,
que estabilidade nas planagens e glissagens (curvas descendentes, bem fechadas)...
e pensar que os engenheiros aeronáuticos só vieram a descobrir e usar isto
muito recentemente, não mais que 20 anos (o
winglet – aba na ponta da asa, dobrada
verticalmente, para cima, que diminui o arrasto, melhora a estabilidade, dá
mais velocidade ao avião e proporciona economia de combustível). A
EMBRAER, uma das maiores indústrias de aviões, foi uma das precursoras na
descoberta e uso dos winglets, dos
pequenos aos maiores aviões a jato, como o ERJ-170.
Mas,
não é do urubu, “inventor” natural do winglet
que quero falar. Quero falar dos urubus de Lavras. Algum tempo atrás escrevi
uma crônica intitulada Meu Sonho de Ícaro e nela falei do sonho de criança, de
voar tal qual o urubu. Mestres no voo de planeio e ataque vinham do alto da majestosa
Serra da Bocaina e pousavam próximo ao curral da enorme chácara onde eu morava,
na Rua Progresso, hoje Vila Cruzeiro do Sul. Maravilhas de voos, suaves,
tranquilos, flutuando no céu azul, mas, de repente, ao avistar uma presa ou
petisco no solo, despencavam em altíssimas velocidades, geralmente para a
captura de alguns restos de carnes esquecidas no local do abate de animais
domésticos para consumo, prática muito comum nas fazendas, chácaras e até mesmo
em casas da cidade com grandes quintais.
Mas,
também não são desses urubus que vamos falar hoje. Melhor mesmo foi o sucesso
do urubu no Vitória Palace, o mais chique e charmoso hotel em estilo colonial
da cidade de Lavras. No dia 18/03/2011, em visita à cidade natal, estava ali hospedado, com minha
família e na hora do jantar vi um bem produzido cartaz anunciando o Voo do
Urubu. Fiquei intrigado, mas, me aproximando verifiquei tratar-se do lançamento
de um livro com aquele título. Esquisito, para se dizer o mínimo. Entretanto, como
já me inspirara em seus voos planados, decidi procurar o salão onde acontecia o
referido evento, pois seria surpreendente conhecer alguém que também “gostasse”
de urubu, ou melhor, do seu belo voo. Surpresa! Era o Dr Paulo Rodarte, médico urologista
e escritor lavrense, que estava lançando seu mais novo livro e com aquele mesmo
título estampado no cartaz no hall do hotel. Beberiquei um champagne e fui
prosear com toda sua família, gentilíssimos ao saber que eu era apenas um
hóspede curioso, embora lavrense, mas vindo de longe. Descobri que a esposa
dele, estilista, conhecera minha esposa 35 anos atrás e havia feito algumas
roupas para ela, recém-chegada de Belo Horizonte e que ainda não conhecia
ninguém em Lavras. Amizade que se consolidou, de imediato.
Adquirido
o livro, devidamente autografado, num relance vi as mais de cem crônicas
contando casos e causos passados em Lavras. Dei muitas gargalhadas com a leitura
dinâmica de algumas delas, ali mesmo, na mesa de jantar enquanto a família, em outro salão do hotel, degustava as delícias do filé de tilápia a
belle meunière, especialidade do restaurante do charmoso Vitória Palace.
Aprendi, com as palavras rimadas, da poetisa Simone Almeida, que “O urubu é o Mestre do voo, divino réu./ Anjo
de cor, gari do céu./ No imenso azul e branco véu./ Cumpre, urubu, seu papel”. E
o Dr Paulo Rodarte completa: “Se eu fosse
um urubu, não faria caso (do descaso humano) e avoaria sempre, fugindo do
descaso de quem torce o nariz aos urubus. Ah! Se não fossem os urubus”...
Perfeitas, as louvações ao gari de terno preto, acrescento eu!
Além
de escritores e admiradores dessa ave, como este menino que almejava suas asas
para voar da Serra da Bocaina até a varanda de sua casa ou pousar no alto da
torre da igreja matriz de Santana, há ainda os fanáticos como aquele cambuiense
que criou e ensinou um urubu a voar. Uma impressionante história em que ele
próprio voa num paraglider ao lado de sua ave, a “loira”, aluna e acompanhante
das delicias dos planeios por entre montanhas do sul de Minas. Não acredita? Confira
o vídeo indicado abaixo e depois diga se é ou não o mais belo dos voos? O voo
do urubu! E Lavras tem pelo menos dois Paulos que gostam do voo do urubu. Sobre
o primeiro, o editor do já citado livro escreveu:
“.... admirador confesso dos
urubus, escreveu e amou tanto as pessoas, sobretudo os obreiros humílimos que
com ele se cruzam, nas madrugadas frias ao descer a rua de Lavras. Ele, de um
jeito extrovertido, controvertido e divertido, vê a vida sob um prisma de
arco-íris. Com todas as cores. Mais do que as têm o arco-íris. O segredo de
tanta criatividade e alegria? Benditas endorfinas. Seu remédio, sua sina. Voo
do urubu é maravilhoso. Podem dizer que urubu é asqueroso. Feio, repelente. Voo
do urubu voa. Como avoa o doutor Paulo Rodarte. Sem sair do chão. Sem asas. Com
muita imaginação…”
Bem,
quanto ao menino das Lavras, continuo com a fascinação dos voos planados daquela
ave. Seja a dez mil metros de altura a bordo de grandes aviões de carreira, na
rota Brasília/Rio, quando contemplo a serra da Bocaina e a cidade e a
imaginação recorre ao voo planado do urubu, com vontade de saltar da aeronave e
pousar lá embaixo. Ou ainda quando voo no ultraleve, ou mesmo da varanda de
minha chácara, tento acompanhar um ou outro urubu que avisto pelas nuvens, tal
qual aquele adestrador de Cambuí. Mas, nunca consegui acompanhar suas bruscas
curvas descendentes em altíssimas velocidades, como em um verdadeiro looping da Esquadrilha da Fumaça. Afinal essas aves têm winglet nas pontas das asas e por isso
têm maior agilidade, melhor desempenho em voo.
No silêncio do espaço, anônimo, ouço o silêncio reconfortante da alma em
pura alegria de menino que sonhava voar. Pena que não tive a sorte do Celinho,
de Cambuí-MG. Meus voos, de ultraleve sem winglets,
não têm a companhia de uma “loira”, um urubu treinado para acompanhar os voos
nas planuras do planalto central. Até porque aqui não temos montanhas. Mas, não
importa, pois naquelas montanhas de Lavras também eu voo por aqui, sem sair do
chão, apenas com as asas da imaginação batendo, com o coração apertado e o
filme da majestosa Bocaina, rodando com o cenário então contemplado diariamente
desde a infância e que acalentou meu Sonho de Ícaro. E agora, depois de mais de
60 anos daqueles devaneios pueris, posso dizer que desafiei o poema do príncipe
dos poetas, Guilherme de Almeida:
“tudo
muda, tudo passa
nesse
mundo de ilusão;
Vai
para o céu a fumaça,
“fica
na terra o carvão”.
Como
a fumaça, cantada em verso, também fui aos céus, graças ao invento de Santos
Dumont e até voei mais alto que o urubu e certa vez de ponta cabeça, em manobra
de “perda” num pequeno ultraleve de instrução, também despenquei em altíssima
velocidade. Portanto, a “fumaça” do poema, que se espargiu nos céus, para mim
não foi ilusão, materializou-se em voos pilotados. Mas, recordo e concordo com o
restante do poema, ou melhor, seu início. E dele faço vida:
“Lembrança
quanta lembrança
dos tempos que já lá vão
Minha vida de criança,
minhas
bolhas de sabão...”
Vida,
sim, pois sou eterna criança embalada em sonhos de Ícaro, fazendo, ainda hoje,
voos planados na imensidão do azul do céu do planalto central, de onde posso
ver das alturas, em pura realidade, o pássaro dourado, de asas abertas, no
chão, ideado por Lucio Costa e plantado por Niemeyer, a belíssima Brasília com
suas asas. Posso dizer e confirmar que as almas dos velhos e das crianças
brincam no mesmo tempo. As crianças ainda sabem aquilo que os velhos esqueceram
e têm de aprender de novo: que a vida é brinquedo que para nada serve, a não ser
para a alegria! Assim disse outro poeta, Rubem Alves, que também viveu boa
parte de sua vida contemplando a belíssima serra da Bocaina, em Lavras.
Velho?
Criança...? Até nisso, mais uma vez, o príncipe dos poetas confirma, em sua
última estrofe:
Só
tu, coração, não mudas,
Porque
és puro e porque és bom!
E
vale repetir: Benditas endorfinas./ Meu remédio, minha sina./Voo do urubu é
maravilhoso./ Podem dizer que urubu é asqueroso./ Feio, repelente. Voo do urubu
voa. Como avoa no ultraleve o Menino das Lavras e também o doutor Paulo
Rodarte. Este sem sair do chão. Sem asas, como dito pelo prefaciador do livro,
de quem copiei este parágrafo, ligeiramente adaptado. Ambos viajamos, com muita
imaginação, nas asas da ave do mais belo voo, seja do urubu, do falcão, da
águia, ou mesmo da alma destravada, transbordando amor aos nossos leitores.
Brasília,
15 de dezembro de 2016
Paulo
das Lavras
A fotógrafa, Catarina
Júlia, flagrou o belo planeio de um urubu, em Lavras.
Asas arrebitadas nas
extremidades e estabilidade no voo
A
Embraer, indústria aeronáutica, brasileira, foi das pioneiras a “copiar”
a lição das pontas de asas arrebitadas. São os
chamados winglets, inexistentes até
a década
de 1990. Na foto, da internet, um
modelo EMB- ERJ-135
O
menino, a bordo do G3- 737-800, de prefixo PR- GUD,
de
Confins para Brasília, aterrisando, em 12/12/2015.
Esse é um dos maiores winglet,
com
aproximadamente, 2,5m de atura
O detalhe
do “winglet” de uma águia em voo estabilizado
Da varanda
da casa da chácara, o menino contemplava
os rasantes
dos voos dos urubus, que vinham
do alto
da serra da Bocaina. Sonho de Ícaro, voar, voar
...para pousar no topo da torre da igreja matriz..
....sonho de menino
...realizado de outra forma, muitos anos depois,
num ultraleve. Voei vetorando a proa
para a lateral
norte da linha de cumeada da montanha. Voar paralelo
e nivelado
com o cume
da bela Serra da Bocaina que emoldura a cidade de
Lavras, foi mais emocionante
que o sonho do menino de tenra idade...
Ainda demos uma “glissada” na pequena aeronave Aeroboero
e nos lembramos
do perfeito voo doo urubu, que arrebita as pontas das asas
e desce velozmente, com estabilidade.
Sonho também do médico e escritor Paulo Rodarte,
consolidado
em livro de
crônicas com sugestivo nome.
Autografado com peculiar dedicatória, de quem tem
aguçado senso de observação... e o menino
o trouxe para casa com especial gratidão
..levou seu “Voo do Urubu” para o salão nobre do majestoso
e imponente Vitória Palace Hotel
Foto: arquivos de Renato Libeck
Dr Paulo Rodarte, autografando seu livro
Foto: Jornal Lavras 24 Horas
Celinho, de Cambuí-MG, com seu urubu “Loira”. Voos
de paraglider
acompanhados pela ave em verdadeiro show de
acrobacias
foto: internet
A paixão do Menino das Lavras, "pilotando" ultraleve. Revoadas no céu azul
do planalto central, ainda que
sem montanhas e
sem winglets no ultraleve, mas
a lembrança do voo planado
do urubu é constante
Revoadas à noite nos mostram, da altura do voo de um
pássaro, outro
belo e dourado pássaro de asas abertas,
repousando no chão..., a cidade de Brasília, que não
é sonho, é realidade de
outro sonhador, maior que todos, JK...!