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“Já tive medo de morrer. Não tenho mais. Tenho
tristeza. A vida é muito boa. Mas a Morte é minha companheira. Sempre
conversamos e aprendo com ela. Quem não se torna sábio ouvindo o que a Morte
tem a dizer está condenado a ser tolo a vida inteira.” — Rubem Alves
Poucos já
sentiram de perto o bafo da morte. É assustador, apavorante. Por sete vezes,
sim, sete vezes, escapei da foice, carregada às costas, daquela sinistra
Senhora vestida de preto e cara de caveira. Essas histórias eu conto em livro
de memórias. Mas, me lembro particularmente que, numa dessas vezes, quando o
Boeing 737-300, novinho em folha, com apenas 200 horas de voo, caiu em
desastrado pouso sob tempestade de chuva e vento, com enorme barulho, turbina
se desprendendo, pedaços da asa ficando para trás, vinte mil litros de
combustível se espalhando e encharcando a todos os mais de 100 passageiros,
uma única imagem e preocupação veio-me à mente: a família, esposa e filhinhas
pequenas. O que seria delas? Pedi a Deus que as
abençoasse e delas cuidasse. Felizmente todos se salvarem naquele
acidente e poucos ficaram feridos, e dentre estes eu próprio. Desde então mudei meu
desejo de como gostaria de morrer. Incrível, mas sempre imaginei que ela,
aquela Senhora de preto, me colheria num desastre aéreo, pois eu viajava cerca
de 200 (duzentos) dias por ano e o receio era real. Parecia até charmoso o
obituário de um jovem executivo internacional dando conta de que morreu
prematuramente num acidente aéreo. Mas, a dura realidade, ali, encharcado de
querosene, numa grande poça de combustível e lama, ferido, sem forças para
fugir de iminente explosão e incêndio, que felizmente não aconteceram, atacou o
pânico até que alguém me socorresse, colocando-me na ambulância do Corpo de
Bombeiros do resgate, cuja ação foi imediata. Um trauma muito forte, o bastante
para nunca mais imaginar ou romantizar
os momentos finais. Mas, nem sempre o destino obedece aos nossos desejos,
pois, não é que, mesmo depois de ter mudado esse desejo, retirando o desastre
aéreo de pauta, eles, os acidentes ainda voltaram por duas outras vezes? A
segunda vez foi em Washington, com pouso forçado em Dulles Airport/VA, em total
pane hidráulica de outro Boeing, um 727/200. Pista preparada com espuma anti-incêndio
e tela de aço ao final da enorme pista de 4.000 metros e todos se salvaram,
novamente nos braços dos bombeiros e paramédicos. O terceiro acidente aéreo foi
num moderno Airbus, com incêndio à bordo na longa rota de Chicago a São
Francisco/Cal. Antes que todos se intoxicassem ou se despressurizasse a cabine
da aeronave, um desvio de rota e mergulho quase de ponta cabeça em direção ao aeroporto
de Las Vegas, salvaram-se todos, com apenas um ferido e hospitalizado naquela
famosa cidade dos cassinos onde passamos uma noite (de graça, mas sem graça
depois de tamanho susto e consequentemente sem jogatina naquele paraíso dos
jogos).
O filósofo
Rubem Alves disse: “A vida é muito boa. Mas a Morte é minha companheira. Sempre conversamos
e aprendo com ela. Quem não se torna sábio ouvindo o que a Morte tem a dizer
está condenado a ser tolo a vida inteira”. Mais que certo e eu aprendi a
dialogar sobre esse tema, embora a maioria das pessoas fuja de tal assunto e
não poucas têm pavor. Por isso, certamente, sofrem. Nas redes sociais sempre
aparecem relatos de obituários, carregados de sentimentos de dolorido luto pela
perda de entes queridos. E nesse sentido, escrevi para uma amiga que durante
longo tempo cuidou do pai enfermo:
“feliz daquele que cuidou da vida de
seus entes queridos preparando-os para a partida. Somente assim a alma será recompensada
com a alegria do amor dedicado aqueles que sempre
nos amaram. Viva sua vida de forma que o medo
da morte nunca possa entrar em seu
coração”.
Cuidar dos entes queridos
preparando-os para a partida, esse é o conselho. Sim, esta é a maneira mais
amorosa e digna para os momentos finais, seja de outrem ou de si próprio. Quando chegar a minha hora
quero estar cercado dos entes queridos, em casa. Nada de UTIs cheias de
aparelhos para prorrogar a vida por alguns momentos ou dias. UTIs são ambientes
de vida vegetativa, fria, sem o calor do aconchego dos entes queridos com os
quais e para os quais você viveu toda a vida. Já escolhi e espero que assim seja,
com os momentos finais no leito de minha casa, ao lado dos entes queridos, tal
qual aconteceu com meus pais. Este é o paraíso que espero e poder dizer:
Obrigado Vida, pois vivi e convivi em paz, com alegria. Acho mesmo que assim
deveria ser para todos. Viver em paz, partir em paz, com sentimento de missão
cumprida. Não é uma escolha difícil de ser atendida. Assim espero e não
gostaria que houvesse funerais em estilo convencional. Nada de velório,
cemitérios..., tudo isso é tão triste, causando profunda dor aos entes
queridos. Cinzas..., sim, é bíblico: “lembra-te que és pó e em pó te tornarás”. De minha parte já deixei determinados a
cremação e cinzas espalhadas pelos locais marcantes de minha vida e aos quais
sou grato. Quando me formei em Agronomia, aprendi uma frase que me marcou
profundamente: “Sejamos gratos ao solo, pois ele nos alimenta na vida e nos
acolhe na morte”. Junte-se esta frase aos ditames bíblicos e certamente
entenderemos o ritual das cinzas. Tenho
certeza de que a cerimônia das cinzas será mais reconfortante para os entes
queridos. Terão certeza de que esse ato foi o último desejo de quem partiu de
bem com a vida e agora devolve ao solo, que a todos alimenta em vida, as cinzas
que lhe pertencem. Não é uma escolha difícil de ser atendida, assim creio, pois
aqueles que passam por nós não vão sós e nem ficam sós. Deixam um pouco de si e
levam um pouco de nós ... e assim, a morte se torna a morada da saudade. E que essa saudade, que
nada mais é do que o amor que fica, seja de alegrias e não de tristezas.
Brasília, 17 de dezembro de 2022
Paulo das Lavras