Nesses últimos
anos tenho tido um pouco de medo da saudade, especialmente agora em época de
pandemia, pois confinados pela quarentena não podemos viajar para matar a
saudade. Quando a saudade bate à porta a alma se recolhe e roda o filme na
memória. A saudade, diz o poeta e filósofo Rubem Alves, é “um buraco dolorido na alma, a
presença de uma ausência. A gente sabe que alguma coisa está faltando. Um
pedaço nos foi arrancado. Tudo fica ruim. A saudade fica como uma aura que nos
rodeia. Por onde quer que a gente vá, ela vai também. Tudo nos faz lembrar a
pessoa querida, nossas coisas e o passado. Tudo que é bonito fica triste, pois
o bonito sem a pessoa amada é sempre triste. Aí, então, a gente aprende o que
significa amar: esse desejo pelo reencontro que trará a alegria de volta. A
saudade se parece muito com a fome. A fome também é um vazio. O corpo sabe que
alguma coisa está faltando. A fome é saudade do corpo. A saudade é a fome da
alma”.
Em outras épocas combatíamos a saudade com a promessa de qualquer dia ir ali para revisitar o local, a pessoa, o passado. Hoje, confinados, lamentamos não poder dar o troco na saudade que teima em nos provocar. É verdade que no passado tudo era diferente, tudo ainda estava por vir. A gente contava os anos pela frente, o futuro do que será, ou seria a vida da gente. Mas, a saudade e a solidão, são apenas companheiras de viagem e ela, a saudade, em vez de provocar medo pode se transformar em fonte de cura que faz a vida valer a pena. E esse tipo de saudade não passa nunca, pois sempre há algo ou alguém, dos quais estamos sentindo falta e constantemente passeiam pelos nossos pensamentos, registrados, gravados para sempre na memória cintilante. Embora seja reconfortadora para a alma, a saudade quase sempre dói e dói muito. Assim acontece frequentemente quando passo de avião a dez mil metros de altura sobre a cidade natal, na rota Brasília/Rio e a vejo aninhada entre a Serra da Bocaina e o Rio Grande. Acontece algo estranho. A alma mergulha em profundas reminiscências e aqueles quinze ou vinte minutos finais do voo, para a chegada ao aeroporto do Rio de Janeiro, passam num piscar de olhos, tal a intensidade da imersão da mente que destrava o subconsciente e faz rolar um longo filme das melhores e saudosas recordações da infância e juventude ali vividas. Interessante notar que quanto maior a distância no tempo e espaço – vivo a 1.000 km e há 47 anos distantes da terra natal – maior o sentimento de se reviver todo o passado que se descortina ali, na sua mente, destravado e desencadeado que foi com a visão real do local onde se viveu. Mas, esse dourado exílio em distantes terras dá ferroadas implacáveis, com doloridas reminiscências que somente são aplacadas com as lambidas no doce da vida. E há, por ventura, melhor “doce” do que rever a terra natal?
Parece
que a saudade é viciada, tem especial apreço nas viagens, quando distante e só
nos encontramos, ela dispara sua varinha mágica a nos ferir. Quando nos encontramos em viagens, principalmente
naquelas mais demoradas pelos longínquos países do mundo, as ferroadas da
saudade são mais intensas e doloridas. Lembro-me que, certa vez, não consegui conter as lágrimas ao ouvir os apitos de um navio zarpando
do porto de Nova York, com a bandeira brasileira tremulando ao vento. Pedi ao
motorista que parasse o carro e sozinho fiquei ali a contemplar, extasiado, a
cena como se fosse a oitava maravilha do mundo. Foi um verdadeiro ataque de banzo,
nostalgia, que é a saudade dolorida da pátria. Compreensível, “rever em filme
na mente” e imaginar ali, diante daquele símbolo nacional, a pátria amada, a
família, os amigos, os lugares onde vivi em plena harmonia com a felicidade na
alma. Por isso jamais me envergonharia daquelas lágrimas solitárias diante dos
sonoros e tristes apitos do navio e principalmente o tremular do auriverde
pendão que, diante do qual e por tantas vezes, nos perfilamos e cantamos o Hino
Nacional. Infeliz quem vive sem saudade, ensina-nos o poeta
Bastos Tigre em seu antológico poema:
Infeliz de quem vive sem saudade,
Do agridoce pungir alheio às penas,
Sem lembranças de amor e de amizade,
Hoje vivendo o dia de hoje, apenas.
Triste de ti, ancião, que te condenas
A mole insipidez da ancianidade
E não revives na memória as cenas
De prazer e de dor da mocidade!
Ter saudade é viver passadas vidas,
Percorrendo paragens preferidas,
Ouvindo vozes que se têm de cor.
Sonha-se… E em sonho, como por encanto,
A dor que nos doeu já não dói tanto,
Gozo que foi é gozo inda maior.
A saudade é o tema preferido dos poetas. Caio Fernando de Abreu escreveu magistralmente que as suas saudades da infância eram todas tingidas de giz e lembravam as cores do arco-íris. A saudade guarda as memórias que trazem riso, as pessoas que tocaram a nossa alma e que, de alguma forma, nos mudaram para melhor. Clarice Lispector romantizou a saudade e creio ter sido a que mais completamente a descreveu. Tem saudade de tudo que marcou a vida. Quando vê retratos, quando sente cheiros, quando escuta uma voz, Tem a saudade dos amigos que nunca mais viu, de pessoas com quem não mais falou ou cruzou, das coisas que viveu e das que deixou passar sem curtir na totalidade.
Contrariando o
título da crônica, posso afirmar que não tenho medo da saudade. Dizem que ela
mata..., não sei, mas que dói, dói! Mas é uma dor gostosa. Ela é a herança dos
que abriram o coração para amar. Ela é ao mesmo tempo que dor, sadia, um doce, cura
a alma. Sentir saudades é sinal de que estamos vivos. Viva a saudade, boa, gostosa,
que nos faz viver, reviver! E hoje se encerra o mês de abril. Lá vem Maio, o
mês das flores no hemisfério norte, a alegria do despertar da vida nas flores
que produzem as sementes que germinam a vida. Vida colorida como as cores do arco-íris
que enfeitava nossa infância ainda viva na alma. Vida, como nos trazem a
saudade e a alegria das flores que nos fazem eternamente meninos. A saudade
nada mais é do que o amor que fica na nossa alma, ávida pela Vida. Viva a
saudade gostosa, o amor pela Vida!
Brasília, 30 de
abril de 2022
Paulo (menino) das Lavras
Crianças livres, felizes... , criatividade não falta. Infância colorida de aventuras.
Foto do autor – 1981