“Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la.”
Edmund Burke
O menino de apenas 12
anos, interno num Seminário onde se preparava para se tornar um sacerdote da
Igreja Católica, fez uma pergunta inusitada ao padre Manoel de Lima Cáuper,
amazonense, tutor dos seminaristas recém chegados ao seminário. Padre Cáuper era
o único brasileiro e de ascendência indígena, integrante do corpo de religiosos
do Seminário, dirigido por padres missionários holandeses. Ali estudavam,
internos, uma centena de meninos e rapazes. “Padre Cáuper, por que e qual a
razão de se realizarem procissões em homenagem a santos e em especial as da
Semana Santa”? A resposta foi direta e fulminante para a inocente imaginação do
menino-seminarista: “o povo gosta de circo”. Baixou-se o pano do palco, ou
melhor, do picadeiro do suposto circo (o menino abandonou o Seminário no final
daquele seu primeiro ano de vocação sacerdotal) e partiu à procura de outras
explicações mais lógicas. Intrigado, o curioso menino que já não concordava com
certos rituais de sua igreja passou o resto de sua vida pesquisando as supostas
razões para o costume brasileiro de celebrar tantos feriados religiosos, cada
um deles com a promoção de festas e mais festas, a maioria delas bastante
ruidosas e conflitantes com os ideais da fé e da religiosidade propriamente
dita. Se a festa era para propiciar um momento de louvor, contrição da alma,
invocando a presença e as bênçãos de Deus, porque aquele espalhafato, ruidoso e
sensual onde todos de exibiam para ver e serem vistos? O menino nunca se deu
por satisfeito com aquela resposta do padre, brusca, curta, contundente e de
certa forma jocosa.
Se a vida começa de fato com a memória, a
história da humanidade, e isso é um fato
constatado até mesmo pelo famoso e exótico Deputado Juruna que carregava à
tiracolo um gravador-K7 para registrar e posteriormente exibir às autoridades
as suas promessas eleitoreiras ou discursos demagógicos, buscamos também a
memória histórica para o caso das missas pomposas e procissões com imagens de
santos veneráveis inseridas num contexto de festas que mais beiram o paganismo
com divertimentos extravagantes que contrariam o sentido da religiosidade, o culto
a Deus. Quais seriam os motivos que levaram o povo brasileiro a cultuar certos
costumes religiosos em especial as procissões, folias de reis, congadas, festa
do Divino e tantas outras, com o aval e protagonismo direto do clero católico?
Não foi difícil encontrar as origens de tal costume brasileiro. Dois
historiadores da atualidade, Laurentino Gomes e Lilia Moritz Scharcz, descrevem
com detalhes a origem desses costumes brasileiros relativos à religiosidade
misturada com práticas pagãs em suas obras “Escravidão’ e “As barbas do
Imperador - D. Pedro II, monarca nos trópicos”. Seus textos trazem relatos de viajantes
estrangeiros que visitaram a colônia brasileira durante o século XIX, sendo que
alguns aqui permaneceram por vários anos. Os viajantes, cientistas europeus,
foram, em sua maioria, convidados pelo imperador Pedro II e a não menos
culta imperatriz Tereza Cristina de
Bourbon-Duas Sicílias (nascida em Nápoles, em 1822 e apelidada de “A mãe do
Brasil”, tendo ajudado na imigração italiana para o Brasil). Outros vieram
ainda nos tempos de D.João VI e D. Pedro I. Um em especial, veio estudar nosso
país financiado pelo rei Francisco I das
Duas Sicílias, pai da noiva prometida ao príncipe Pedro II.
Ambos
os autores, Laurentino e Lilia, são unânimes em atribuir o costume das festas e
procissões à influencia portuguesa e também dos escravos africanos, conforme
relatos de cientistas estrangeiros que estiveram na colônia durante todo o
século XIX. Os relatos históricos dos
cientistas foram publicados na Europa e são bastante detalhados, embora alguns
deles (e a propósito) tivessem condenado com veemencia a promiscuidade de
raças, crenças pagãs africanas em conflito com os costumes religiosos europeus.
Mas, aqui há que se considerar que a Europa era muito racista naquele século
XIX e assim devemos compreender que os cientistas estavam alinhados com as
ideias vigentes, com argumentos biologistas e racistas que, aliás, foram mais
tarde sistematizados por Darwin, Spencer e Gonineau, criadores do mito das
raças. De qualquer modo os historiadores atuais, Lilia e Laurentino, descrevem
os comentários de viajantes estrangeiros, de forma crítica e, por isso, são de grande
valia para entendermos os costumes brasileiros de então, embora não tenham nos
alertado para esse viés ideológico predominante na Europa, especialmente em
Portugal, o último país a retirar a
igreja como órgão de Estado e onde a religiosidade e os cultos a santos
veneráveis eram os mais fortes e tradicionais de todo o continente. Temos
portanto, nesse caso dos costumes religiosos e de festas, dois DNA de origem, o
português e o africano.
Dentre
os cientistas que estudaram o comportamento social dos brasileiros da era colonial
e imperial, Car Seidler, que aqui permaneceu de1825 a 1835 e até chegou a ser
oficial do exército imperial, foi bastante ácido e depreciativo em seus conceitos
sobre a sociedade brasileira, afirmando que o povo misturava religião com
vícios, como a bebida e a sensualidade e que faltava virtude nas mulheres
brasileiras, caracterizando-as como “fáceis”. Em 1836, ano seguinte, à saída de
Seidler, chegou ao Brasil o missionário norte-americano, Daniel Kidder, que
aqui permaneceu por seis anos. Também ele se constrangia com a escravidão que
já havia sido abolida no Reino Unido em 1833 e ainda em seu próprio país, os
EUA onde havia sido assinado o Slavery Act Abolition, encerrando-se de vez a
escravidão naquele mesmo ano de 1833. Kidder também se escandalizava com a
falta de decoro nas cerimônias religiosas, com a mistura de raças, o uso de
trajes sensuais, cantorias e danças, tudo regado a bebidas, como a cachaça e animados por orquestras de
negros e estrondos de fogos de artifício.
O
mais antigo viajante que passou pelo Brasil foi naturalista alemão e discípulo
de Humbolt seu
grande mestre,
príncipe Maximiliano Wied-Neuwied,
que aqui chegou em 1815, logo após lutar ao lado das tropas austríacas e
inglesas contra Napoleão na ocupação da cidade de Paris. Observou que as
populações da colônia brasileira viviam nas fazendas, acomodadas, sem muita
disposição para ir às vilas e que devido à dificuldade de mobilidade, tanto
social, quanto espacial, se transformaram numa sociedade agrária, patriarcal e
escravocrata, fechada em si. Predominava ali, segundo o cientista, a inercia, a
falta de ambição individual e vontade de progredir, aliadas à preguiça:
"poucos são aqueles que pensam em melhorar a sua condição. A sua
indolência vai ao ponto de lhes ser indiferente ganhar dinheiro", afirmou
o príncipe Wied-Neuwied.
As vilas, segundo o viajante, eram integradas por pequenas casas, muito mal
conservadas. As ruas, quase desertas, só apresentavam algum movimento nos
domingos e dias de festas, quando a população se reunia, incluindo os
fazendeiros que vinham com suas famílias e um séquito de escravos para os
festejos. Em Lavras esse costume predominava, pois muitos fazendeiros moravam
em suas fazendas e aos sábados e feriados vinham para a cidade, onde mantinham
uma casa para esse fim. Essa situação só começou a mudar nos anos de 1960,
quando a indústria automobilística se desenvolveu e as estradas foram
melhoradas, permitindo aos fazendeiros morar na cidade e se dirigir diariamente
à suas fazendas. Mas, ainda sobre o cientista Wied-Neuwied, ele reconheceu,
apesar de protestante, a importância dos missionários jesuítas no processo de
colonização do Brasil, reforçando a tese iluminista predominante na Europa, da
associação estabelecida entre a colonização, escravização e pedagogia no
processo civilizatório dos povos gentios. Segundo Laurentino Gomes, a própria Igreja
assim pensava e também justificava a escravidão. Quanto às festas, todos os
visitantes estrangeiros que aqui vieram estudar a colônia portuguesa, foram
unânimes em afirmar que os festejos, fossem eles para comemorar aniversários,
datas históricas ou festas religiosas, ostentavam luxo e pompa, além de “vergonhosa”
promiscuidade entre raças e muita sensualidade. Segundo a historiadora Lilia
Schawarcz, em todas as festividades montava-se a mesma maquinaria do
espetáculo, que transformava a realidade em representação. E isto não era uma
invenção local, mas sim a reprodução dos costumes portugueses e africanos de
assistir a cortejos reais e procissões, completa a autora. O que causava
surpresa a todos viajantes e em certos casos até escandalizava a alguns era a falta de decoro
nas cerimônias religiosas, a mistura de raças, o uso de trajes sensuais,
cantorias e danças, regadas à cachaça e animados por orquestras de negros e
estrondos de fogos de artifício, como já dissemos anteriormente.
Para
os negros, escravos e prisioneiros de seus patrões, as festas religiosas eram
um meio de se promoverem, de se libertarem um pouco do jugo desumano. Ali, na
procissão do santo do dia, ele se integrava, sentia-se como “livre”,
participando da sociedade reinante. Assim eram nas procissões descritas pelos
cientistas estrangeiros, no Brasil Colônia do século XIX e sempre com o aval da
igreja e dos patrões. Ninguém parecia interessado em acompanhar as procissões e
outros atos religiosos com “sentimentos elevados”. Ali estavam para ver e serem vistos. Para o
negro, essas festas se constituíam em oportunidade para participarem da
sociedade. Por isso, sabiamente associaram muitas de suas divindades africanas
à figura de um santo da igreja católica, o que era aceito pelo clero, aliás
recomendado pela Coroa que via nessas manifestações religiosas dos escravos uma
forma de aliviar a saudade da terra-mãe e com isso evitar movimentos de fuga
para formar seus quilombos e ali praticarem seus costumes nativos. Assim, as
festas religiosas, misturadas aos ritos e costumes africanos eram mesmo de chocar qualquer europeu acostumado aos
rigores dos cânones católicos e seu próprio puritanismo hipócrita. Eram mesmo consideradas
muito espalhafatosas, beirando o profano segundo seus costumes europeus. Tinha
razão o padre Cáuper, quando disse que o povo gosta de circo, causando espanto,
chocando o menino seminarista em 1958. Ele
só não revelou que tal costume vinha dos tempos dos escravos e que , se por um
lado, os padres converteram os negros ao catolicismo, por outro, os negros
converteram os brancos para as suas festas de origem africanas.
Assim, após esse extenso preambulo, cabe
relembrar a frase em epígrafe que abre esta crônica, enunciada por Edmund Burke,
filósofo irlandês (1729-1797) e que é mais que atual. Ali se afirma que: “Um povo que não conhece sua História está
fadado a repeti-la”. Por isso corremos atrás e pesquisamos a história da
igreja, a fé e a religiosidade a partir de seus primórdios e, lógico,
considerando ainda a convivência com a
intimidade religiosa desde os tempos de menino de dez anos, que acolitava
missas e estudou em colégio católico de padres alemães, de rígida disciplina,
passando ainda pelo seminário, de padres holandeses cuja disciplina era ainda
mais rígida que a dos padres alemães. Passou, ainda, o menino pelas missas das
10 horas de domingo com suas distorções de objetivos (era o point para ver as
meninas e iniciar uma paquera) e tudo
isso o levou, aos 22 anos de idade, à decisão de abandonar as doutrinas
eclesiais por conta das várias inconsistências. Não vai aqui, no entanto,
nenhuma condenação a quem frequente missas ou outros cultos e festejos
religiosos, pois cada um sabe de si e como encontrar refúgios para sua alma que,
às vezes, se depara com grandes problemas e questionamentos existenciais. Todos
temos o direito de escolher o nosso caminho e certamente, a religiosidade
quando bem conduzida, nos ajuda a vencer os percalços da vida.
Para o menino de então, que
frequentava a missa das 10:00 horas na igreja matriz de Lavras, a religiosidade
estava bem presente até os 12 anos. Coroinha, gostava de acolitar aquela missas
dominical. Era bem solene. Antes do inicio da missa propriamente dita o padre
saía a caminhar pelo longo corredor central da igreja matriz, aspergindo os
fiéis. Acompanhavam-no os dois coroinhas, paramentados com batina vermelha e
sobrepelizes brancas, rendadas no punho. Para os meninos coroinhas era uma
honra estar ali acompanhando o celebrante, que portava um balde de prata com
água benta, chamado de caldeirinha e o aspersório com o qual se aspergia os
fiéis. Durante todo o trajeto, os coroinhas seguravam as abas laterais da casula,
espécie de manto que se veste sobre a alva e a estola e cuja cor acompanha a
cor litúrgica do dia. Nesse desfile de aspersão, era hora do menino-coroinha dar
uma olhadela para os parentes e amiguinhos com um piscar de olhos e ligeiro
sorriso. Isto quando não fazia careta com o banho de água benta que voava pelas
laterais e atingia seu rosto. Neste caso ficávamos cegos e doidos para voltar
para o altar, onde de costas para os fiéis enxugávamos o rosto na própria
batina. Mas, melhor ainda eram as gargalhadas que os meninos coroinhas davam ao
se deparar com uma fiel recebendo as cinzas na testa, na missa da quarta feira
de cinzas, após o ultimo baile de carnaval. Chegávamos a apostar quantas moças
encontrar´[íamos com restos de confete e purpurina nos cabelos ou mesmo no colo.
A cada vez que víamos uma moça naquelas condições
tínhamos que demonstrar, para marcar pontos. Cmo fazer isso, se as mãos estavam
segurando a bacia de cinzas e o padre de olho em tudo? Inventamos levantar o pé
para trás até a cintura. Além de olhar para trás e rir, às vezes nos embaraçávamos
na batina vermelha e até se desequilibrava. Os padres ficavam intrigados com
aquilo, mas nunca descobriram do que se tratava. Mas esse ritual
de acolitar as missas logo se encerrou na puberdade quando outros interesses
afloravam. Não era para menos, pois, as meninas se apresentavam em chique
desfile de roupas e complementos, mais parecendo um footing ou desfile de moda.
Interesses marcados pelas trocas de olhares, paquera discreta e ao término da
missa, seguiam para a praça, o jardim, onde se completava o footing. Dali seguiam
para o Clube de Lavras, bem em frente à praça, para a tão esperada hora
dançante, antes mesmo do almoço.
Mas, por que os jovens dos anos de 1960
se valiam do subterfúgio da “missa das 10:00 horas” para se encontrarem,
paquerar e depois partirem para a hora dançante, ainda antes do almoço de
domingo? Com certeza se valiam da mesma tática usada pelos escravos dos tempos
da colônia. Os jovens queriam escapar do severo jugo dos pais que tudo
proibiam. À noite era pior, pois havia na cidade o chamado “Leão das Nove”,
quando todos, sim, todos saíam em disparada para suas casas, onde os pais
ficavam a esperar os jovens à porta da sala.
A cidade ficava vazia, em completo silencio a partir das nove horas da noite. Ora,
aos domingos de manhã? Duvidar de que? Quem poderia dizer algo em contrário, em
desfavor do jovem, quando supostamente ele estaria ali, na igreja, “contrito,
fervoroso” sob o olhar do padre que cuida das almas? Lá, na colônia com os
escravos, como aqui, com os jovens, era a forma que a igreja tinha para atrair
os jovens a seus cultos, mesmo sabendo que os interesses pessoais de cada um
deles eram bem diferentes. Sem dúvida, como nas demais festas religiosas e
procissões de antanho, ali estavam para ver e serem vistos, como bem descrevem
os historiadores. Padre Cáuper tinha razão..., o povo gosta de circo. Não podia
ser diferente nas ocasiões das festas religiosas. Mas, repetimos e enfatizamos,
não vai aqui, no entanto, nenhuma condenação a quem frequente missas, cultos e
outros festejos religiosos de qualquer que seja a seita religiosa. O menino
viveu assim, nos anos 60, bem à moda do tempo dos escravos, prisioneiros. Um
olho na missa e outro vagando, à espera do footing no jardim e a hora dançante
no clube social da cidade. Era assim na minha cidade natal, nos anos de 1960.
Bons
tempos!
Brasília, 30 de
setembro de 2021
Paulo das Lavras