Nascido
na fazenda Retiro dos Ipês, ali permaneci até os três anos de idade. Naquele
ano de 1948 nos mudamos para a cidade. Era tempo das irmãs mais velhas
frequentar a escola e também para facilitar os cuidados da saúde do menino que
se recuperava de uma grande cirurgia torácica. O viver na fazenda, livre para
andar nos amplos espaços não foi perdido na cidade. Ali, morei numa grande
chácara com todas as características de fazenda, o pomar, a matinha, o córrego com
límpida e transparente nascente e lambaris em profusão, o curral, as vacas de
leite, galinhas, o cavalo manga-larga marchador, bom de sela e até mesmo um ou
dois cevados na engorda para a produção de carne e banha, costume mais que
tradicional nas fazendas. Um privilégio para o menino, correr pelos pastos,
cavalgar, sentir o cheiro da mata e da natureza com seus frutos, pássaros e até
alguns bichos selvagens como o ouriço-caixeiro, tatus, gambás, lontras, coelhos
e preás, além das temidas, embora raras, cobras que habitavam as matas e os
brejos. Tudo isso com a vantagem de se estar na cidade e poder frequentar as
melhores escolas, além de angariar uma plêiade de amiguinhos atraídos pelo
fascínio dos animais, o cavalo, principalmente, caçadas com estilingue e tudo
mais que meninos livres tinham direito. Infância feliz, sem dúvida! Lembranças
que carrego comigo, que muito me influenciaram e certamente tem a ver com a
minha preocupação com as crianças de hoje, encerradas em apartamentos, presas
aos dispositivos eletrônicos virtuais, que em muitos casos as deixam totalmente
alienadas do convívio social com outros e sobretudo da natureza, nossa maior
professora, educadora, que nos mostra os verdadeiros valores da vida.
A vida profissional e acadêmica me levou por muitos
caminhos. Trabalhei, estudei, cresci como profissional e como pessoa. Passei
por muitas cidades, universidades, museus aqui e em muitos outros países, mais
de duas dezenas, em missões de trabalho ou simples passeios. Aprendi muito,
amei todas as experiências, mas, no período em que estive fora – e beira meio
século, a cidade natal e seus encantos da infância e da juventude nunca saíram
de meu pensamento. Minha mente fervilha a cada estímulo em relação a ela, seja
na literatura ou presencial ou mais frequentemente virtual. E o pensamento voa,
batimentos do coração acelerados e a vontade de voltar sempre presente, cada
dia falando mais alto. Ah..., os filósofos e especialmente os poetas
degredistas sabem muito bem do que falam. Proust disse que "os
verdadeiros paraísos são os que perdemos" e o poeta Mário Quintana
ensinou que "a gente continua
morando na velha casa em que nasceu". Casemiro de Abreu
escreveu a Canção do Exílio, exaltando as palmeiras onde canta o sabiá e eu
canto os ipês e as escolas, como escreveu nosso poeta lavrense, Jorge Duarte. Olavo Bilac e Guilherme de Almeida falaram da
Pátria e do coração que é verdadeiro, puro, belo e não muda nunca, embora “tudo
muda, tudo passa nesse mundo de ilusão, vai para o céu a fumaça, fica na terra
o carvão”. Assim, ser degredista é assumir uma volta ao passado da terra natal
e fazer que todos saibam disso, conforme escreveu outro poeta. Afinal, só se compreende a vida mediante um retorno ao passado para melhor viver o presente. É
como se restaurássemos nosso sistema operacional e assim funciona melhor. E que
neste novo ano, que ora se inicia, nossas esperanças sejam renovadas em todos
nós.
De nada adianta pensar que isso, a nostalgia, o amor à
terra natal, a vontade de voltar, é apenas uma pseudo-doença dos dias de hoje,
por conta da mobilidade à jato ou estímulos virtuais com imagens recebidas a
toda hora pela internet. Não é! Tem-se notícia disso há mais 2.600 anos. Foi no
século VI A.C que os judeus foram escravizados pelo rei da Babilônia. Viveram
no cativeiro por cerca de 70 anos, quando então o novo rei permitiu o regresso
dos escravizados à terra de Judá. Enquanto no cativeiro, imperava a nostalgia,
a saudade, o choro da ausência de seus lugares e símbolos queridos que marcam
para sempre seu território, seu lar, sua fortaleza moral. O compositor Verdi soube muito bem interpretar aquele sentimento do
povo degredado compondo a belíssima ópera “Nabuco”. Ali canta as dores e os
sonhos de regresso à pátria onde nasceram os judeus, “as encostas e as colinas, onde os ares são tépidos e
macios, com a doce fragrância do solo natal. Saúda as margens do rio Jordão e as
torres abatidas de Sião”, escreveu Verdi.
Embora
eu tenha somente 45 anos de exílio dourado, a uma distância de 1.000 km, a mesma
que separava os judeus de Jerusalém à Babilônia (hoje Bagdá, no Iraque),
tenho a vantagem de vencê-la em apenas uma hora, de jatinho, enquanto os judeus
levavam 40 dias a pé ou em camelos para vencer a mesma distância pelos desertos
da região. Mas ainda assim, o sentimento de perda, de saudade, é o mesmo e
posso também dizer, plagiando Verdi, “saudades da silhueta da bela serra azul
da Bocaina que emoldura a cidade e que trazia a brisa da chuva que descia a
serra com seu cheiro de terra molhada, a fragrância inconfundível e
inesquecível do solo natal; me lembram ainda as margens do rio Grande com suas
lagoas apinhadas de curimbatãs e a bela ponte da rodovia, o velho monumento abatido, do Cine Theatro Municipal, onde nós, as
crianças saíamos chorando das matinês da Sexta Feira Santa após as cenas chocantes
do filme Paixão de Cristo, mostrando a crueldade de sua crucificação e tortura
com lanças e azorragues...
Ooh,
minha terra querida dos tempos que não voltam mais. Oh, solo querido e gentil,
perdido há tanto tempo, mas que a toda hora incomoda o nosso peito e nos faz
chorar a ausência de seus símbolos e sobretudo os amigos de infância que ali
deixamos. Falem, mostrem, sim, suas lindas praças, das belas e históricas igrejas,
colégios, clubes, faculdades, dos bondes, tudo enfim, até mesmo dos pequenos aviões
do aeroclube. Reacendam a memória no
nosso peito, Falem-nos do tempo que passou e dos amigos que ali deixamos ou até
mesmo daqueles que já nos deixaram para sempre. Também eu, um dia, quero voltar,
ainda que em cinzas e que elas repousem para sempre aos pés dos ipês e das
escolas que florearam alimentaram a nossa alma! Voa pensamento, voa. Voa para o
doce solo da terra natal, bem assim como cantado na ópera. Emocione-se, ouça e
veja a encenação da ópera de Verdi em curto vídeo, cujo link vai abaixo e diga
se é capaz de não se tocar, sentir o amor à terra natal.
Brasília,
05 de janeiro de 2020
Paulo
das Lavras
Veja
a bela e breve encenação de parte da ópera Nabuco, de Verdi: https://www.youtube.com/watch?v=FJ8JRD4xVmQ
A terra natal é o refugio da alma para aqueles dela
vivem distantes.
Lavras nos anos de 1940/50. Igreja Matriz de
Santana, vendo-se ao fundo da foto
O telhado alto da Escola Firmino Costa, onde estudou
o menino
Foto: acervo de Renato Libeck
Cidade de Lavras, mais recente, emoldurada pela
belíssima serra da Bocaina
Foto: acervo de Renato Libeck
A grande chácara onde morou o menino. Rua Progresso,
hoje Vila Cruzeiro do Sul.
A belíssima vista para a serra azul da Bocaina,
ficou marcada para sempre na alma do menino
A bonita ponte da BR 381, sobre o Rio Grande, inaugurada
em 1959. As vazantes do rio enchiam as pequenas lagoas nas margens com grande cardumes de curimbas e
douradas.
Foto: acervo de Renato Libeck- 1960
Cine Theatro Municipal, demolido nos anos de 1960.
Ali as crianças assistiam às sessões de matinês aos domingos. Nos filmes da
Paixão de Cristo, durante a Semana Santa, era comum sirem chorando por causa
das forte cenas da crucificação.
Foto: acervo de Renato Libeck
A principal praça da cidade, Dr Augusto Silva, ou
simplesmente “jardim” e
o antigo bonde, que rodou até o ano de 1967
Foto: acervo de Renato Libeck
A mesma praça com as imponentes e majestosas
Palmeira Imperiais, que contornam
a Escola Carlota
Kemnper, vinculada ao Instituro Presbiteriano, que chegou à cidade em 1893
Foto: acervo de Renato Libeck
No coração da cidade, a igreja do Rosário,
inaugurada em 1754. A seu lado o sobrado
do Capitão Evaristo Alves e mais adiante o
Castelinho.
Foto: acervo de Renato Libeck
Sobrado da esquina, Colégio Aparecida, onde o menino
cursou o ginásio e o científico
Foto: acervo de Renato Libeck
A velha Escola Superior de Agricultura de Lavras-
ESAL, hoje Ufla,
que formava os jovens no curso de agronomia.
Foto: acervo de Renato Libeck
Os pequenos aviões de treinamento eram a atração dos
meninos no antigo campo de aviação.
Foto: acervo de Renato Libeck
Rodei o mundo, trabalhei bastante, no país e no
exterior, mas mesmo com todos os encantos,
a saudade da terra natal nunca me deixou. Aliás,
interessante, até mesmo os artistas
que passaram por Lavras ainda mantém vínculos com a
cidade.
Foto do autor, NY-1978
... é o caso da famosa cantora da Jovem Guarda,
Wanderléa. Voltou à Lavras,
onde viveu dos 4 aos 11 anos, como mostra a foto na rua
Dr Gammon,
visitando a
antiga casa onde morou.
Foto: acervo de Renato Libeck
Não só Wanderléa, como também os amigos dos tempos
de colégio, Nilson Naves,
Ministro do STJ;
José Márcio de Carvalho, também do MEC (penultimo da direita) e
Salvador de
Miranda (residente em BH), estão sempre a visitar Lavras, a cidade natal.
Foto do autor- Brasília, solenidade no STJ
Não tem jeito, o poeta Mario Quintana acertou em
cheio: "a gente continua morando na velha casa em que nasceu". Levei
para Brasília o carro de boi que pertenceu à família, em Lavras e o Jeep, comprado
do Exército, de S.J. Del Rei, como a relembrar a vida na fazenda.
Foto do autor
Ah... o calor humano dos mineiros de Lavras... Saudade
das gostosas comidas da cozinheira “do Carmo”, na casa da Ponte de dona Edna,
às margens do rio Capivari em Itumirim. Saudades de ser recebido na cozinha,
pois além do calor humano e da prosa. o calor do fogão a lenha também nos
aquece.
Minas é Minas e mineiro... não tem igual!
Foto do autor - Itumirim, MG, 2017