Conheci
Brasília em maio de 1966 numa visita cultural da turma do 3º ano de agronomia
da ESAL/UFLA. Da janela do velho ônibus Chevrolet, modelo de antiga jardineira
fabricada no ano 1952, contemplamos a Esplanada dos Ministérios, a Avenida W3
Sul com seus três ou quatro hotéis (Alvorada, das Américas e das Nações e mais
tarde o Bristol). Em toda sua extensão havia árvores recém-plantadas, não
medindo mais que dois metros de altura, se tanto. Estacionamos na plataforma
superior da rodoviária do Plano Piloto e nos posicionamos para as fotos. Ao
longe fumegava o Ministério da Agricultura que, naquele exato momento, sofria
um grande incêndio. Soube-se depois que o incêndio teria sido criminoso. Havia
muita poeira na cidade, até mesmo na Esplanada que ainda não era totalmente
urbanizada e ajardinada. Os viadutos do final da asa sul ainda não estavam
concluídos e havia muito movimento de terra nas laterais. Hospedamos-nos no
anexo do Brasília Palace Hotel, o único então existente na orla do lago e bem
próximo ao Palácio da Alvorada, residência dos presidentes. Visitamos inteiramente aquele belíssimo
palácio, tanto os arredores como seu requintado interior, especialmente o
majestoso Salão Nobre no primeiro piso e posamos para fotos na fachada posterior,
a chamada fachada leste, com seus deslumbrantes jardins voltados para a orla do
lago Paranoá.
A primeira visita
à cidade foi rápida, apenas um dia com pernoite e deixou em toda a turma a
sensação de uma cidade fria, sem gente nas ruas e estritamente burocrática.
Para os garotos de 20 anos aquele foi apenas um lugar a mais na lista de
cidades percorridas, rumando-se em seguida para Goiânia, onde tínhamos visitas
técnicas programadas pela Secretaria de Agricultura. Brasília não atraiu e nem inspirou nenhum dos rapazes nesse primeiro
contato. Assim também pensava o menino das Lavras que concluiria o curso de
agronomia dali a um ano e meio. Sequer imaginava que menos de dez anos depois
iria se radicar em Brasília, onde passaria a maior parte de sua vida.
O segundo contato, em maio de 1973, foi melhor,
a bordo de um jato Caravelle, da companhia aérea Cruzeiro do Sul, em escala a
caminho de Goiânia, onde o menino-professor da ESAL/UFLA foi ministrar um curso
de instalações rurais para técnicos da ACAR-GO (órgão de extensão rural do
governo do estado, hoje com o nome de Emater). Contemplei a cidade do alto e
achei interessante seu desenho, em forma de avião, com suas longas asas
contornadas por bonito lago de água bem azul reluzindo naquela manhã ensolarada
e seca de outono. Uma aproximação para pouso pela cabeceira leste
proporcionou-nos ampla vista da cidade e seu extenso lago em forma de “u” em
suave curva de nível. Pouco tempo depois, em outubro de 1973, o menino volta,
em sua terceira visita, para um congresso de Agronomia. Desta vez o taxi rolou
pelo Eixão Sul, passou pelo Setor Comercial e desembarcou o passageiro na
portaria pergolada do Hotel Nacional, o ícone de Brasília, que hospedava
presidentes e dignitários do mundo inteiro. O jovem profissional viera representar
o CREA-MG nas discussões dos temas nacionais da profissão e formação na área da
agronomia. Mas, ainda não se aventurara a explorar a city. Entretanto, ficou
satisfeito com a visita e seus resultados. Logo em seguida, nas funções de Pró-reitor
de Pós-Graduação da ESAL/UFLA, voltou à cidade inúmeras vezes, no período
1973/75. A primeira viagem do jovem Pró-reitor de Pós-graduação se deu em
novembro de 1974. Desembarcou do One Eleven da Transbrasil, hospedava, quase
sempre no Hotel Planalto, na beira do eixo Monumental, em frente à W3 Sul onde,
do outro lado, se alinhavam os hotéis Alvorada, das Nações e das Américas e
mais tarde também o Bristol. Check-in realizado, correu para o Ministério da
Educação. Dessa vez a cidade parecia mais interessante, até porque o menino
engenheiro passou a mapear mentalmente os trajetos para os locais onde deveria
atuar. Descendo o Eixo Monumental, passando pela rodoviária, ganhou a Esplanada
dos Ministérios, bonita, verde, com seu imenso gramado e a imponência dos
prédios monumentais projetando-se em contraste com o céu de intenso e límpido,
azul de doer as vistas. O Congresso Nacional, monumental, com suas torres
gêmeas ladeadas por duas alvas bacias, era mesmo de chamar a atenção pela
beleza e harmonia arquitetônica. O taxi rolou por quase dois terços da
Esplanada, dobrou à esquerda e do lado oposto alcançou o MEC, o antepenúltimo
da pista de quem vai da Praça dos Três poderes para a rodoviária. Meu GPS
cerebral plotou (registrou), gravando
com exatidão a posição daquele Bloco L, local temporário de trabalho.
Adentrei o grande hall do Ministério
da Educação e Cultura, ornado por uma grande escultura em bronze, esculpida pelo
artista brasileiro, Brecheret, representando um belo nu artístico, de plástica
impecável. Achei linda a escultura de mais de dois metros de altura. Amor à
primeira vista, naquele requintado ambiente de Educação e Cultura. Não bastasse
isso, o hall com seis amplos elevadores era todo revestido de espelho de
cristal fumê, ligeiramente esverdeado. Os elevadores além de espaçosos também
tinham as paredes do fundo revestidas, de cima até em baixo, pelo mesmo tipo de
espelho. Um luxo que deslumbrou o recém-chegado visitante. Gostei da primeira
impressão, muito contrastante com as cidades e paisagismos até então conhecidos.
Subimos ao 7º andar onde funcionava o DAU- Departamento de Assuntos
Universitários e ali despachamos pela primeira vez o projeto de tornar a velha
Esal, depois UFLA, num centro de pós-graduação de excelência. Estava dado o
primeiro passo para a implantação da pós-graduação na ESAL/UFLA, que hoje se
desponta nos primeiros lugares do ranking do MEC. Ainda nessa primeira viagem
profissional seguimos para o Setor de Autarquias Sul, sede da Capes/MEC, recém
transferida do Rio para Brasília. Ocupava dois andares de um prédio situado
logo abaixo da Polícia Federal. Mas, nossa atuação profissional na área de
Educação Superior e a transferência definitiva para Brasília, ainda em agosto
de 1975, já é outra história a ser contada.
Falemos de Brasília. O que é mesmo
uma cidade e quais seus elementos que atraem e fixam seus habitantes? Um
traçado de ruas e praças com seus prédios? Esta seria uma definição muito
simplista e reduzida ao espaço urbano. Uma cidade, no entanto, é composta por
muito mais que isso. O que faz verdadeiramente uma cidade é a sua gente, seus
habitantes, sua cultura, costumes. E quais são seus habitantes? São apenas os
nela nascidos? Não, são todos que nela trabalham ou moram. Especialmente na
novíssima capital federal que acolhe a todos os brasileiros dos mais diversos
rincões. Aliás, aqueles que a escolheram para morar talvez sejam mais ligados a
ela do que os nativos, pois fizeram uma escolha consciente, com base em pelo
menos um grande fator que motivou a escolha. A interrelação das pessoas com os
espaços físicos, o traçado urbanístico da cidade, seus prédios, monumentos e
paisagismo marcam a vida das pessoas, ligando-as indelevelmente e reforçando os
laços e o amor à cidade. O escritor Cyro dos Anjos, que chegou a Brasília em
1960, como subchefe de gabinete de Juscelino Kubitschek, escreveu uma carta, em
23 de maio de 1960, a Carlos Drummond de Andrade que morava no Rio de Janeiro.
Nela enumerou as razões pelas quais estava gostando da cidade, a saber:
1-
Uns
crepúsculos fabulosos
2-
Um horizonte
imenso, abarcante, que se insinua por toda parte, enfiando-se pelas casas e até
pelas almas adentro. O qual horizonte é tão dilatado e sereno, que a gente é
conduzida a todo instante a matutar no Sumo Arquiteto – esse que faz, nas
nuvens, palácios mais leves do que os de Oscar Niemeyer – e a conversar sobre
temas como imortalidade da alma etc., tal como sucedia, em tempos idos na Praça
da Liberdade, às 3 da manhã, ao se encerrar uma serenata.
3-
Noites estreladas
em que se ouve, de verdade, a pitagórica música das esferas
4-
A terra é
praiana, chã e formosa, com pequenos outeiros mui disfarçados e algumas veredas
mui graciosas
O poeta ainda prossegue:
“ sinto-me devolvido à minha paisagem de
infância, neste taboleirozinho, meio campo, meio cerrado, onde bodoquei
passarinho (sem acertar nenhum) nas orlas de Montes Claros. O ar é seco, à
noite vem o friozinho de Belo Horizonte, outro motivo de retrospectivas de
ternura....”.
Assim posso plagiar, sem
medo, as palavras desse grande escritor que veio povoar a nova capital nos seus
primeiros dias de sede do poder nacional. Posso dizer, como ele, que aqui
também encontrei ressonância para os ecos de minha infância e os sonhos da alma
inquieta. Interessante notar que semelhante entusiasmo não teve o outro
escritor e poeta, o destinatário da carta, Carlos Drumond de Andrade. Mas sua
ironia poética foi notável. Vinte e dois dias depois ele respondeu:
“... me causou satisfação... Acredito que a identificação com paisagens
da infância e crepúsculos belo-horizontinos ajudou a coisa; já eu não teria
maior facilidade em incorporar-me ao ambiente, por faltarem aí as tenebrosas
montanhas de ferro da minha região e também porque, a essa altura dos
acontecimentos e da vida, sinto que vendi minha alma ao Rio”.
Mas, voltemos à Brasília. Lógico que nesse caso fico com o escritor Cyro dos
Anjos. A cidade me seduziu e nela até encontrei as montanhas que Drummond reclamou
em sua carta resposta. Na zona rural as encontrei, ainda que bem baixinhas, mas
são montanhas. E saudoso como ele, tratei logo de construir meu paraíso
perdido, da infância – uma bela chácara, como dizia Proust em sua antológica
obra, “Em busca do tempo perdido”. Ou ainda, confirmando outro poeta, Mário
Quintana, posso
afirmar que "a
gente continua morando na velha casa em que nasceu" e sobre Brasília, o
próprio Cyro disse:
“sinto-me devolvido à minha paisagem de infância, neste taboleirozinho,
meio campo, meio cerrado, onde bodoquei passarinho (sem acertar nenhum) nas
orlas de Montes Claros”.
Mais uma vez
incorporo as palavras do poeta, pois, no presente caso, minha infância foi
igual, passada nas chácaras e fazendas das Lavras do Funil, e mais, com o
belíssimo cenário da Serra da Bocaina emoldurando minha casa em ampla chácara,
no lugar onde hoje se localiza o bairro Cruzeiro do Sul, nos altos da cidade.
Verdadeiro “menino de roça”, embora tivesse se mudado para a cidade aos três
anos, passava todas as férias nas fazendas. Ora, as férias de dezembro,
janeiro, fevereiro e julho, representavam quase um terço do tempo e aquela era
a verdadeira vida do menino..., na roça, onde caçava passarinhos (mas também, como Ciro dos Anjos, raramente os
acertava com bodoques), montava a cavalo, toureava os bezerros mais
velhos e bravos, subia em árvores, nadava em ribeirões e lagoas às margens do
Rio Grande, soltava pipas ou papagaios nos meses de ventanias. Os amigos eram
todos os meninos da redondeza, os filhos dos empregados e os primos que vinham
passar temporadas na fazenda. E como eram esperadas as férias. A cidade, a vida
urbana, estava sempre associada a um intervalo para a escola e, para o menino,
era muito chata aquela obrigação de escola.
Mas e a cidade
de Brasília? Como disse o poeta, aqui é espaço para todo lado! Não há aquela
sensação de sufoco de arranha-céus, nem tempo nublado, sem linha do horizonte...
Aqui tudo é espaço aberto, horizonte de 360º à vista, céu azul estonteante, sol
o ano inteiro... E, melhor de tudo..., bosques e mais bosques que envolvem as
quadras residenciais do chamado Plano Piloto, o centro da capital. Esses
bosques são recheados de frondosas árvores, fruteiras e pássaros de várias
espécies. Há, entre outros, sabiás, bem-te-vis e joões-de barro, asa branca,
corujas buraqueiras aos montes e até uma grande novidade para o menino-agrônomo
ligado à natureza: a curicaca, ave de grande porte e longo bico curvo de quase
um palmo e que frequentemente vem, em bando, passear e se alimentar nos bosques
que rodeiam os edifícios da quadra-parque residencial.
Parabéns
cidade de Brasília neste dia de seu 57º aniversário, 21 de Abril, o mesmo
dedicado ao nosso mártir da independência – Tiradentes com seu lema: Libertas quae sera tamen, homenagem
dupla, escolhida criteriosamente pelo fundador da cidade, JK. Aqui os
brasileiros se encontram e nela vivo há 42 anos, em harmonia com o espaço
urbano, com sua belíssima arquitetura, parques e jardins além de seu “mar” azul,
o céu, ensolarado o ano inteiro.
Brasília, 21
de abril de 2017
Paulo das
Lavras
Esplanada dos Ministérios,
vista do mirante da Torre de TV
Foto do autor- dezembro de 2006
A Esplanada em construção- estruturas metálicas
Foto: Brasília das Antigas
Um avião visto da janela de outro avião
O jovem estudante de agronomia em sua primeira visita
à Brasilia-1966
1- 50 anos depois, no mesmo local
Turma de Agronomia visitando o Palácio da Alvorada
maio de 1966 (o
4º em pé, da esquerda para direita)
Foto: Gilvan de Souza
Revisitando o mesmo local, janeiro de 2015 – fachada leste
JK e seu sonho realizado – 21 de abril de 1960
Foto: Brasília das Antigas
A beleza verde da Esplanada e da Catedral, vista pelo retrovisor
2015 – foto do autor
Beleza também na secura de agosto
2015 – foto do autor
O tempo voa na Esplanada dos Ministérios
2016- foto do autor
Minha mulherona no saguão do MEC. Amor à primeira vista
foto: Acervo
do Palácio do Planalto
Surpreendentemente a mesma mulher recepcionou-me em visita
ao belíssimo Salão Nobre do
Palácio da Alvorada.
Escultura de Brecheret – foto do autor 2016
O bucolismo da Serra da Bocaina, emoldurando
a casa da chácara,
em Lavras, onde morei até comoletar a
faculdade
...também na chácara, em Brasília, o
ambiente rural é lembrado
...até mesmo na superquadra urbana onde plantei goiabeiras para deliciar
as curicacas que aqui vêm degustar
as goiabas bem maduras
Foto do autor: 2015
... bucolismo em plena superquadra do Plano Piloto de Brasília? Sim, uma
cena típica e contrastante de dona Severina, catadora de papeis recicláveis.
Foto do autor - 2013
Brasília é espaço democrático para manifestações políticas
Autor e filha- 2015
Espaço democrático para explorar o sentimento de liberdade, ainda que
tardia...
Foto do autor- 2016
... e fazer-me relembrar aquele que ocupa o centro da principal praça de
Vila Rica, a capital do ouro, berço da Inconfidência e e local do primeiro
grito de independência, que culminou com o enforcamento de Tiradentes, em 1789. Em vez de apenas a cabeça esquartejada, hoje ali está de corpo e "alma".
Foto 1968- autor
Além da liberdade e expressão política, a Esplanada, de Brasília,
garante também a liberdade religiosa. Preparando os tapetes para a
Corpus Christi, juntamente com a repórter.
Foto- 2015, autor