Menino da roça das
Lavras do Funil, depois engenheiro agrônomo e professor de agronomia e
engenharia ambiental, nascido e criado em meio à natureza, não podia mesmo
tolerar mais que cinco anos de “esgravatura” na capital federal sem que
houvesse um refrigério para o corpo e a alma. Gravata de segunda a sexta feira
e às vezes, também aos sábados e domingos em almoços e jantares de serviço. Era
mesmo um sufoco, mesmo em ambientes aclimatados com ar condicionado no MEC ou
no frio cortante de zero grau, de Michigan no norte dos E.U.A, na região dos Grandes Lagos, onde trabalhava certa parte do ano.
Não demorou muito e o menino passou a procurar uma chácara para lazer. Colocar
os pés no chão, sentir o cheiro da terra molhada pela chuva que nos alimenta e
faz brotar o verde, era mesmo imprescindível, para quem nela fora criado e estudou-a
a fundo. Porém a busca foi desanimadora e demorou anos. Áreas de cerrado
inóspito sem água corrente e muito próximas às cidades. Mas, no primeiro dia
útil de janeiro de 1981, visitei um novo empreendimento. Ao descer um altiplano
em direção a uma bonita várzea, passei por três grandes fazendas com extensas
áreas de criações de gado de leite e de bois de corte da raça nelore que, com
suas pelagens brancas, se destacavam nas verdes pastagens de capim braquiária. Cruzei
o ribeirão Santana, anunciado na placa rodoviária, seguindo a linha de energia
elétrica e logo adiante uma escola rural. Logo na entrada da fazenda
avistava-se ao longe, inacreditavelmente, uma cordilheira de pequenas serras,
coisa rara no Planalto Central, como a recordar as montanhas das Minas Gerais.
Gostei do cenário. Senti-me em casa, longe das planuras e com montanhas na
linha do horizonte, ainda que pequenas. Ainda assim podiam servir ao desejo de
escala-la para ver o que haveria do outro lado..., tal qual o menino das Lavras
sonhava diante da imponente Serra da Bocaina que emoldura a sua cidade natal no distante sul de Minas. E
não é que depois fui explora-la, de ponta a ponta, numa cavalgada coletiva?
A alegria foi maior quando adentrei a sede da antiga Fazenda Barreiros, que fora subdividida em chácaras. A centenária casa sede, com fogão a lenha, água corrente na pia da cozinha, aquecimento de água no fogão a lenha, com serpentinas e boiler originais da França, como pude identificar pelo nome do fabricante. Cheguei à porta da cozinha e nem acreditei no que vi, uma extensa plantação de marmelos, como nunca antes havia visto. Era mês de janeiro já quase próximo à colheita e os frutos reluziam seu amarelo marmorizado. Corri e apanhei um belo fruto e o degustei apreciando, num primeiro momento, o aroma que me transportou à infância no casarão da chácara na minha cidade natal. Era como se ali estivesse aos seis, ou oito anos, passando a mão naquele fruto lisinho, com algumas penugens facilmente removíveis. Poucos metros adiante estava o curral e a seu lado um canal de água para o gado, que se distribuía por todos os piquetes de pastos seguintes até atingir outra nascente e escoar várzea abaixo até o ribeirão, de onde, seis quilômetros acima, fora desviada sua água pelo canal construído por escravos. Tratei de logo escolher a minha chácara próxima à sede antiga e dali retirar a energia elétrica, aproveitar o abundante canal de água e ainda usufruir da proximidade da antiga casa de caseiro, onde morava o velho “Carioca”, originário do Quilombo do Mesquita e empregado da antiga fazenda então subdividida. Herdara uma chácara e tinha suas plantações de milho, arroz e feijão. Dele ganhei deliciosas mangas, apanhadas com um bambu, de frondosas e imensas mangueiras. Contar com vizinhos afeitos à lida da roça era tudo que eu queria..., nada de cidade grande. Pessoas simples, humildes, tais quais os das fazendas de meu pai nas Lavras do Funil.
A alegria foi maior quando adentrei a sede da antiga Fazenda Barreiros, que fora subdividida em chácaras. A centenária casa sede, com fogão a lenha, água corrente na pia da cozinha, aquecimento de água no fogão a lenha, com serpentinas e boiler originais da França, como pude identificar pelo nome do fabricante. Cheguei à porta da cozinha e nem acreditei no que vi, uma extensa plantação de marmelos, como nunca antes havia visto. Era mês de janeiro já quase próximo à colheita e os frutos reluziam seu amarelo marmorizado. Corri e apanhei um belo fruto e o degustei apreciando, num primeiro momento, o aroma que me transportou à infância no casarão da chácara na minha cidade natal. Era como se ali estivesse aos seis, ou oito anos, passando a mão naquele fruto lisinho, com algumas penugens facilmente removíveis. Poucos metros adiante estava o curral e a seu lado um canal de água para o gado, que se distribuía por todos os piquetes de pastos seguintes até atingir outra nascente e escoar várzea abaixo até o ribeirão, de onde, seis quilômetros acima, fora desviada sua água pelo canal construído por escravos. Tratei de logo escolher a minha chácara próxima à sede antiga e dali retirar a energia elétrica, aproveitar o abundante canal de água e ainda usufruir da proximidade da antiga casa de caseiro, onde morava o velho “Carioca”, originário do Quilombo do Mesquita e empregado da antiga fazenda então subdividida. Herdara uma chácara e tinha suas plantações de milho, arroz e feijão. Dele ganhei deliciosas mangas, apanhadas com um bambu, de frondosas e imensas mangueiras. Contar com vizinhos afeitos à lida da roça era tudo que eu queria..., nada de cidade grande. Pessoas simples, humildes, tais quais os das fazendas de meu pai nas Lavras do Funil.
Interessei-me pela plantação de marmelo da antiga fazenda.
Pretendia comprar a sede, preservar o casarão de 200 anos, com serpentina
francesa e recuperar a plantação de marmelo. Não foi possível, pois o empreendedor
a reservara para seu próprio uso. Contou-me ele que os registros encontrados na
fazenda indicavam que a produção de doce, a marmelada Santa Luzia, era toda
exportada para a Confeitaria Colombo, no Rio de Janeiro. O transporte demandava
até dois meses e era feito em jacás, no lombo de burros, até Uberlândia. Dali
seguia de trem para o Rio de Janeiro. Algum tempo depois, já na década de 1940,
a estrada de ferro da Rede Mineira de Viação- RMV chegou até Catalão, ligando-a
a Angra dos Reis e encurtando mais de 200 km nas jornadas da tropa de burros
cargueiros. Nunca imaginei que o doce ali produzido pudesse viajar tão longe,
em demorada viagem. Deveria ser muito boa a qualidade do produto, pois na
ocasião já existiam as plantações de marmelo em Delfim Moreira e Marmelópolis
na Serra da Mantiqueira, no sul de Minas, bem mais próximo do Rio de Janeiro e
com rodovias asfaltadas desde os anos de 1930, época do presidente Getúlio
Vargas, assíduo frequentador das estâncias hidrominerais da região.
A sede da Fazenda Barreiros não durou mais que dois anos
e tudo veio abaixo para atender à especulação imobiliária. Os dez hectares da
sede foram retaliados e vendidos. No lugar da velha casa com portais e portas
de madeira maciça foi erguida uma nova casa em estilo urbano. O pomar com
marmeleiros, laranjas e outras fruteiras, deu lugar a um lago de pesque-pague.
Desde então perdi contato com a história dos marmelos e as marmeladas de Santa
Luzia, até que um dia, no final dos anos de 1990, encontrei num restaurante de
estrada, entre Luziânia e Cristalina, a caixinha de Marmelada Santa Luzia.
Presenteei amigos em Lavras com o estoque da deliciosa marmelada que ali mesmo
saboreei. Fez sucesso! Entrei em contato com o produtor rural e marquei uma
visita à Fazenda Pindaibal, a sete quilômetros de minha chácara, onde era
produzido o doce artesanal embalado em caixinhas de madeira. Rever a plantação
de marmelo despertou as reminiscências, não só pelas frutas como também por
suas longas varas, vergadas sob o peso dos marmelos. Foram surpreendentes,
também, as reações dos amigos nas redes sociais sobre as lembranças da vara de
marmelo. Muitos pais faziam uso desse corretivo nas crianças arteiras. O menino
foi um que experimentou o “santo remédio” de alguns vergões nas canelas nos
idos da década de 1950. Outro mais antigo relembrou que as professoras dos anos
de 1920/30 também faziam uso da vara de marmelo. Mas, de maneira geral, todos
relembravam a vara sem nenhum trauma, pois os meninos eram mesmo mais que
travessos, pois desfrutavam de plena liberdade de espaço, com enormes quintais
e as ruas que sequer tinham veículos como hoje. Predominaram, no entanto,
comentários mais que elogiosos ao doce de marmelo, sempre com a figura de
familiares preparando-o nos grandes tachos ou mesmo na cozinha. Em Lavras, origem
da maioria dos comentários, era comum haver pelo menos um pé de marmelo no
quintal, numa clara demonstração de que tanto lá, como cá, nas cercanias de
Brasília, os costumes dos portugueses e dos escravos das minerações de ouro
deixaram marcas idênticas, como essa da marmelada.
Quilombo
do Mesquita, tradição da marmelada artesanal
O
estado de Goiás foi explorado nos séculos XVII e XVIII pelos bandeirantes
paulistas, tal qual aconteceu nas Minas Gerais. Vieram em busca do ouro e de pedras
preciosas. Índios e negros foram seus escravos na extração desses minerais,
principalmente o ouro. Formaram-se muitos povoados, hoje cidades, que ainda
guardam os traços culturais da época colonial. Cristalina e Luziânia (fundada
em 1746), próximas à Brasília, são exemplos bem característicos dessa
colonização. Muitos escravos conseguiam fugir do jugo violento e do açoite dos
feitores das minas de ouro e de plantações de mandioca, arroz, milho e feijão,
culturas de subsistência da escravaria e dos familiares. Em fuga, formavam os
“quilombos” em meio às matas, quase sempre às margens de córregos e pequenos
rios da região. Ali permaneciam, longe dos senhores que também não se atreviam
a ir busca-los. A mata era traiçoeira e emboscadas eram fatais. Assim nasceram
os Quilombos do Mesquita e do Xavier, a 50 km de Brasília e menos de 20 de
Luziânia, que até 1943 se chamava Santa Luzia.
O
arraial de Santa Luzia chegou a ter, em 1763, no auge da exploração do ouro, algo
como 16.529 habitantes, dos quais 12.900 eram escravos (78%). Portanto, não é
de se estranhar o surgimento de alguns quilombos na região. Contam-se histórias
muito engraçadas sobre o arraial. Uma delas é a história do rego das cabaças.
Cerca de 2.000 escravos escavaram um imenso canal de dois metros de largura por
2,8m de profundidade, saindo do ribeirão Saia Velha (Gama-DF). Atravessava 42 km de serras, várzeas, matas e
muitas pedras até chegar ao destino, a mina de ouro do Cruzeiro, na parte alta
da cidade de Santa Luzia. Estava assim garantido o garimpo. O canal levou mais
de dois anos para ser concluído. Iniciado em 11 de abril de 1768, foi motivo de
muita discussão. O major José Pereira Lisboa dizia em tom de gozação que “a água do Saia Velha poderia vir às minas
do Cruzeiro, não em rego ou canal, mas em cabaças”. O historiador Gelmires Reis conta que na
manhã do dia 11 de setembro de 1770, bem cedo, foi inaugurado o canal e..., “quando menos se esperava, foi aberto o
dique que tinha sido feito nas Terras Altas, e a água jorrou barulhenta pela
Rua do Rosário abaixo” e nelas muitas cabaças rolando e a negrada batendo com
porretes, quebrando-as e cantando: “água
trouxe cabaça, cabaça não trouxe a água”. Ofendido, o major Lisboa saltou
da cama e foi para a rua, armado, mas antes que agredisse os negros foi interceptado
pelo juiz José Rodrigues Costa, que teve a peruca arrancada pelo raivoso
falastrão. Condenado, saiu da cadeia dois anos depois. Por isso o canal ficou
conhecido com Rego das Cabaças.
Melhor
ainda é a história do Quilombo do Mesquita, criado há mais de 200 anos e que
foi certificado pelo Governo Federal em 07/06/2006. Hoje abriga cerca de 300
famílias negras que mantém a tradição da vida rural e lembranças do regime
escravocrata dos séculos XVII e XVIII. As terras pertenciam ao capitão
português Paulo Mesquita, que as abandonou por causa do declínio da mineração
do ouro. Deixou-as para três escravas alforriadas. A fazenda, que acabou se
tornando um quilombo, produzia alimentos para a subsistência das famílias dos
escravos fugidos e os excedentes da produção, especialmente a farinha de
mandioca, eram vendidos na cidade. Nesse quilombo a plantação de marmelo e a produção
artesanal da marmelada têm tradição de 200 anos. Alguns moradores dizem que as
próprias ex- escravas, herdeiras da fazenda, iniciaram o cultivo do marmelo,
cujas primeiras mudas vieram de Portugal. Muitos de seus costumes são
originários do Congo, país africano que mais forneceu escravos ao Brasil. Recentemente
uma missão de músicos africanos, do Mali, visitou o Quilombo do Mesquita e
identificou muitas semelhanças nos costumes africanos como o uso da farinha
como alimento básico, a mandioca com carne, biscoito de polvilho assado e até o
covo, que é um balaio afunilado nas extremidades para a pesca de peixes. Hoje,
uma das preocupações da comunidade é o tombamento de algumas casas antigas como
herança do povo do Congo. Essa referência me fez lembrar o negro Lázaro Simão,
camarada (empregado) da fazenda de meu pai e exímio fazedor de balaios e cestos
de bambu. Certamente era um negro de origem congolesa, pois adorava a festa
anual de Congada, muito comum em Lavras.
Hoje
o cultivo do marmelo está em extinção e poucos agricultores ainda o mantém.
Além de pequenas plantações, apenas quatro fazendas ainda os produzem em larga
escala na região de Luziânia. Mesmo nessas, a produção do doce de marmelo é
artesanal. O doce de marmelo, conhecido por marmelada, tem origem portuguesa e
é feito a partir da polpa dos frutos, cozida em açúcar em grandes tachos de
cobre. Durante a festa foi produzido uma “tachada” de doce, com 10 kg de polpa
e 15 kg de açúcar. Um dos produtores informou que a quantidade de açúcar pode
variar um pouco. Sua receita é de 15 kg de polpa de marmelo para 20 kg de
açúcar e 15 litros de água. Outro produtor, cuja marmelada é bastante
procurada, usa 20 kg de polpa para 25 de açúcar e 20 litros de água. Leva-se
mais ou menos uma hora de cozimento, sendo que primeiramente faz-se a calda
durante vinte minutos, ou pouco mais, até engrossar e chegar-se ao ponto
semelhante ao melado. Só então se despeja cuidadosamente a polpa sobre a calda
em ebulição. Não se pode parar de mexer a massa e para isto usa-se uma colher
de pau de longo cabo. Experimentei a arte de mexer a massa e pude sentir que
não é nada confortável. O calor é demasiado, a fumaça da lenha crepitante incomoda
e ainda há o vapor saído da massa escaldante deixando-nos banhados de suor.
Isto sem falar dos espirros da massa quente que queima a pele. Há que se
proteger bem. Mas, quem faz gosta do que faz. O Sr. Cesar Alves, que aparece
numa das fotos ajudando-me a mexer a massa fumegante, disse que adora aquele
ritual e tem prazer em servir o seu produto. Outro, Ricardo, da Fazenda
Pindaibal, disse que está no ofício há 25 anos e gosta da arte. Perguntei por
que tanto açúcar e um produtor da Marmelada Santa Luzia disse que, devido ao
fato de não se usar conservantes e aditivos, o açúcar, além do sabor, tem
também a função de conservar o doce por até seis meses.
O
capricho na produção artesanal da marmelada se estende até mesmo às embalagens.
Curioso que, por um acordo celebrado na prefeitura da cidade, todas as
marmeladas têm o mesmo nome: Marmelada Santa Luzia. São diferenciadas apenas
pelo nome do produtor que vai logo em seguida, no rótulo. São embaladas em caixinhas
de madeira de pinho que, segundo eles, conservam melhor o sabor da marmelada. Interessante
notar que é o mesmo costume usado na zona rural de Lavras, onde também se
faziam marmeladas e ainda hoje as famosas goiabadas lisa ou cascão.
A
Festa do Marmelo
Neste ano de
2016 o Quilombo do Mesquita celebrou a sua 14ª Festa do Marmelo. Em 15 anos
conseguiram, em regime de mutirão, erguer a Igreja de N. S da Abadia, a
padroeira da comunidade. Neste ano a campanha é para aquisição dos bancos da
enorme capela, capaz de abrigar quase mil fiéis. Foi muito interessante
observar a organização do evento. No primeiro dia, sábado, houve a grande
cavalgada com almoço oferecido numa fazenda do roteiro. Dia seguinte, o segundo
domingo de janeiro, quando a colheita do marmelo está no auge, foi o ponto alto
da festa. Iniciou logo cedo com a Corrida de Reis. Uma centena de corredores
que chegavam exaustos da meia maratona. Nas estradas as patrulhas policiais
paravam os motoristas e recomendavam cautela para com os corredores que
compartilhavam a pista. Não pude deixar de notar uma figura exótica na hora da
foto de um grupo de corredores que acabara de chegar..., o “Kalango Corredor
Exótico Cabuloso”. Cinquenta e seis anos de idade, com seu 187º troféu em mãos.
Figura realmente notável pelo seu estilo e principalmente pelo espírito
competitivo nas corridas de rua. Afinal, já participou de quase duas centenas
de corridas e daqui a apouco fará jus ao registro no Guinness Book. Mas antes
do guinnesbook, posou para uma foto no facebook...
Após
a chegada dos corredores seguiu-se a missa, tão esperada pelos devotos de N. S.
da Abadia. Os cânticos do coral amoleceram o coração do menino arredio às
liturgias religiosas. Tocou-me profundamente a singeleza do momento do
ofertório. Os fiéis levavam até o altar as oferendas, produtos exclusivos da
terra que eles cultivam com amor e dedicação. Bandeja de marmelos, cestos com
hortaliças, um palmito inteiro recém-colhido, pratos de doces artesanais e
caixinhas de marmelada. Até mesmo uma vassoura artesanal, lindamente
confeccionada com folhas de coqueiro e cabo de guatambu, estava presente no
ofertório. Que Deus continue abençoando essas mãos prendadas que cultivam a
terra e dela tiram o sustento para toda a família..., assim orei
silenciosamente, em ato contrito, invocando as bênçãos para toda aquela gente
honrada que ali estava cuidando do alimento da alma. Em certo momento me
ausentei e lá fora, nas escadarias da igreja, encontrei dois meninos com
semblantes tristes. Não se conheciam. Aproximei-os, lembrando-me das missas que
também eu assistia na zona rural de Lavras, nas Três Barras, Dr Jorge-Fábrica
Velha, Cajuru do Cervo e Faria. Como eles, também eu passava, à época, boa parte alheio à cerimônia,
brincando e correndo como fazem as crianças nessas ocasiões. Tinham 12 e 11
anos de idade, a mesma que numa missa rural o menino havia respondido ao Padre
Silvestre que queria ser padre e ano seguinte foi para o Seminário de Itaúna.
Não ficou mais que um ano no seminário, pois a tristeza pela ausência de casa
tomou conta do menino e não mais voltou ao distante internato. Assim, aquela
aparente tristeza dos dois garotos, na escadaria da igreja, remeteu-me ao
distante passado. Perguntei a mim mesmo o que seria deles? O que o futuro
reservaria a aqueles tristes meninos? Estudavam? Estariam acompanhados no
evento? Iriam almoçar ali? Antes que as lágrimas me traíssem os convidei para o
almoço no galpão ao lado e fizemos uma foto ali mesmo, nas escadarias da igreja.
Mas a emoção com meninos de 11 anos não foi só esta. Os coroinhas, que ajudavam
na celebração da missa, trajavam batinas vermelhas e sobrepelizes brancas. As
mesmas que o menino das Lavras usava na Paróquia de Santana e nas capelas da
periferia, ajudando nas missas celebradas pelos padres Miguel Moretti, Luiz
Tings, Carlos Zirke, Raimundo Weilherman, Henrique Boeing e outros. Também
valeu uma foto, com a surpresa de que um dos coroinhas era uma menina, o que
nunca havia visto antes.
Após
a missa houve o leilão típico dos costumes de pequenas comunidades. É a maneira
mais comum de se arrecadar recursos para as obras da igreja. Muitos chegavam
trazendo as prendas, geralmente produtos artesanais confeccionados por eles
mesmos além de comidas, doces e animais. Aliás, os animais foram os primeiros a
serem leiloados. Uma novilha foi arrematada por mais de seiscentos reais e o
mais interessante foi que a mesma não estava lá, não havia telões mostrando-a
em vídeo e sequer uma foto. Fiquei a imaginar como poderiam oferecer lances sem
vê-la, tal qual acontece nos grandes leilões? Confiaram apenas na descrição que
o leiloeiro fez do animal e principalmente no nome do doador. Confiança total.
Coisa de pequenas comunidades onde todos se conhecem, respeitam-se mutuamente e
a palavra tem valor. Grande lição! Mas, antes do leilão, em grande espaço
coberto, apresentou-se a Orquestra do Povo com sanfoneiro, violas, violões, cavaquinhos
e atabaques, com variado repertório de música caipira. Ao mesmo tempo foi
servido o almoço a preços módicos. Enquanto isto a movimentação era intensa em
frente ao grande tacho de cobre sobre fogão a lenha. Muitos queriam ver a
produção do doce de marmelo, a saborosa Marmelada Santa Luzia. Curioso, fui dos
primeiros a ajudar a atear o fogo na lenha e tomar os primeiros vapores ao
mexer a massa. Ao final a marmelada foi distribuída gratuitamente como sobremesa.
O Sr. Cesar Alves, do alto de seus calejados 80 anos de labuta na roça e fazendo
tachas e tachas de marmelada, sorriu satisfeito. Sua alegria é ver o povo
saborear e elogiar a sua deliciosa Marmelada Santa Luzia, ao vivo, ali mesmo na
linha de produção de seu fogão a lenha com reluzente tacho de cobre batido,
fumegando e exalando o cheiro adocicado e meio acre do marmelo.
São
200 anos de tradição! Participar da Festa do Marmelo, no Quilombo do Mesquita,
foi sem dúvida uma prazerosa imersão nos costumes e nas raízes de nossa gente
que muito deve à cultura negra. É como voltar ao passado de nossos avós, de
ascendência portuguesa, que viveram como protagonistas dessa história, no sul
de Minas e que também é comum em outras partes de nosso imenso país. Proust tinha
razão quando disse que "os verdadeiros paraísos são os que
perdemos" e o poeta Mário Quintana ensinou que "a
gente continua morando na velha casa em que nasceu". Então, deve
ter sido por isso que gostei, amei conviver por um dia com a simplicidade do
campo e sua gente trabalhadeira que retira da terra o seu sustento. Vale a pena
preservar as culturas afro-brasileira e portuguesa existentes no Quilombo do
Mesquita. Reconhecido já está pelo governo federal. Que venha o seu tombamento.
Brasília,
15 de janeiro de 2016
Até que, com certo esforço, consegui imitar o gesto
típico da tribo,
mas...,
raspar a cabeça, tatuar-me por inteiro não consigo e
tampouco
pregar peercings no nariz, face, orelhas
e...
... na língua! Demais para o menino véi...
Os coroinhas, Ronaldo e Taliene. O meninão, que um
dia
também foi coroinha, nunca tinha visto uma
menina-coroinha
... o doce já fumegando... e tomem fumaça, vapor e
espirros de massa.
Produção ao vivo, que foi servida como sobremesa na festa
Produção ao vivo, que foi servida como sobremesa na festa
outra marmelada de Santa Luzia, de rótulo rosa, produzida
pelo Sr Carlúcio
Dois meninos, de 11 e 12 anos, moradores do
Quilombo. Semblantes tristes,
com o meninão que nessa idade também estava triste
no internato do
Seminário, bem distante de casa. Compartilhar dos
sonhos dessas
crianças humildes foi muito emocionante.