Por
último, havia o ritual de se levar os novelões multicoloridos para a tecedeira.
Esta tinha grandes teares artesanais e era só colocar os novelos nos seus
recipientes, variando as cores que dariam bonitos matizes às colchas. Por ser
distante, localizava-se nas proximidades da vizinha cidade de Itumirim, nunca
as crianças puderam acompanhar os camaradas em seus cavalos e burros de carga,
tal qual um tropeiro do século XIX, com as cangalhas cheias de cestos e jacás
bem amarrados. Quando as colchas chegavam era só alegria. Então nossa mãe e
suas auxiliares se punham a costura-las, unindo as metades no sentido
longitudinal de seu comprimento. Sim, naquela época as colchas de lã eram
tecidas em metades, nunca por inteiro, pois o tamanho dos teares manuais era
limitado.
domingo, 10 de maio de 2015
Dia das Mães, a pastora de ovelhas e as colchas de lã.
Hoje,
segundo domingo de maio, comemora-se o Dia das Mães. Sempre gosto de escrever
uma crônica exaltando o papel das mães e cumprimentando-as pelo dia especial,
mas desta vez não me sentia inspirado a ponto de fazê-la no dia anterior e
publicar nas primeiras horas do dia. Isto até que recebi, hoje pela manhã, via
e-mail, um belo presente, as fotos de algumas belíssimas colchas de lã de
carneiro. Foram feitas por minha mãe e uma das colchas ainda ostenta as
iniciais de meu nome, bordadas em uma pequena etiqueta de tecido nela
costurada. Foi destinada ao enxoval do menino seminarista, interno na longínqua
cidade de Itaúna, situada a 16 horas de viagem de trem maria-fumaça,
praticamente o único e seguro meio de transporte naquele ano de 1958. Até os
anos de 1960 era comum se produzir de tudo nas fazendas, desde os alimentos,
incluindo o açúcar e o óleo de cozinha, ou mais precisamente a banha de porco.
Exceção apenas para sal e o fermento. Na longa lista de produtos da fazenda constavam, entre outros, queijos, manteiga, doces de todas as espécies, produtos de higiene
como o sabão e sabonetes e ainda a confecção de todas as roupas. Eram comuns pequenas
plantações de algodão, cujos fios mesclados com a lã de ovelhas, também criadas
nas fazendas, produziam tecidos mais pesados como colchas, toalhas e cobertores. Fazia-se tudo, ou quase tudo nas fazendas. Daí, talvez o nome de "fazenda", ou seja , sempre fazendo, nunca parava, nem mesmo na mais que cultuada e respeitada Sexta Feira da Paixão.
Minha
mãe possuía um rebanho de ovelhas (carneiros, como dizíamos quando crianças)
que era criado e mantido na fazenda de minha avó paterna, descendente de
portugueses, Amanda Custódia de Abreu Pereira da Silva. Natural de Ribeirão
Vermelho e antiga herdeira das terras onde se situa o Complexo Ferroviário,
incluindo o local da ponte metálica sobre o Rio Grande e boa parte da cidade
às margens do rio. As terras foram vendidas por sua genitora à companhia
ferroviária, no ano de 1876. Com o dinheiro da venda daquelas terras comprou
uma propriedade na zona rural de Lavras, a Fazenda Três Barras, cujas terras se
localizam ao longo da rodovia Fernão Dias, a dois quilômetros do trevo de
Lavras, sentido São Paulo. Abrangia o perímetro entre os dois primeiros postos
de gasolina que hoje existem, após o trevo. A sede da fazenda ficava exatamente
atrás do Posto Sandrelli – 2, bem ao lado da antiga estrada que ligava Lavras a
Nepomuceno e a vó, Samanda, como era chamada, levou o costume da criação de
ovelhas para produção de lã. Era ali que minha mãe, auxiliada pelos camaradas
(empregados rurais), fazia a tosquia de suas ovelhas. Preparava a lã, num longo
e demorado processo manual que incluía a lavagem para a remoção do pó e da
gordura natural nelas impregnadas. Enxutas ao sol sobre o gramado eram em
seguida desfiadas, manualmente, para eliminar as impurezas de espinhos,
carrapichos e outras ervas que se prendiam durante o pastoreio. Depois passava
pela carda manual que a deixava como pluma aerada e levíssima, em forma de
pequenos rolos que flutuavam. Desta forma era, então, fiada na roda de fiar,
passava-se à dobradeira e em seguida as meadas, que daí surgiam, eram submetidas ao processo de tintura para, em seguida, serem tecidas as colchas.
Mas
o que tem a ver o dia das mães com a pastora e produtora de lãs para o feitio
artesanal de colchas? Tudo! Mãe é mãe! Diz assim o ditado popular e, portanto,
nem é preciso dizer mais, pois o mesmo encerra qualquer outra explicação para o
seu amor aos filhos. Mãe é tudo, poderíamos acrescentar. E se o comercio se
engalanou e preparou todos os tipos de presentes para que as crianças e adultos
materializem seu amor em forma de mimo, hoje dedico minhas palavras aos amigos
que podem curti-las presencialmente e também a aqueles cujas mães já partiram.
Aliás, não importa se ela esteja ou não presencialmente. O que importa que elas,
as mães, são para sempre, eternas. E isto pode ser sentido neste relato
de quem se viu privado, muito cedo, de sua mágica e doce presença. E olhe que
lá se vão 52 anos de ausência, mas nem por isso a lembrança e o amor são
menores.
Recordar
o afeto e a dedicação de uma mãe pelos filhos é uma das maiores doçuras que o
coração pode experimentar. A alma se enleva, a gratidão brota e o sentimento de
maior responsabilidade para com os filhos se multiplica. Lembrar-me das colchas
de lã foi um momento de puro amor. “Rever” minha mãe tosquiando as ovelhas com
enorme tesoura após a contenção do manso animal, distribuir as pequenas tarefas
aos filhos para o desfiamento manual da lã ou, simplesmente andar pelos campos
com toda a família e agregados em busca das ervas que fervidas se transformavam
em tinta, ir aos armazéns ou nos Estabelecimentos Záckia e comprar os
pacotinhos de tintas Guarany para a complementação da variada tintura das
meadas de lã... ah, tudo isso se converte em doces reminiscências, de puro amor
a aquela que tudo fez e dedicou-se aos filhos.
Mas
as reminiscências não pararam por aí quando hoje vi as fotos das belíssimas
colchas de lã, tão necessárias no rigoroso inverno do sul de Minas. O processo
de produção artesanal continuava. Depois de secas e bem tingidas
eram enroladas em novelos separados pelas cores. E que vontade os meninos
tinham de pegar pelo menos um deles e transformar em bola para uso imediato nas
peladas. Mas, nunca fizemos isto. Sabíamos o quanto era trabalhoso produzir
aquele enorme novelo, pois havíamos participado de cada etapa, até mesmo na
lida de ir ao campo, ainda que montados a cavalo para tanger o rebanho para o
curral. Ainda ontem, por pura coincidência, li uma frase de um autor americano
que dizia: “corte a própria lenha e ela queimará e aquecerá muito mais”. Não
haverá defeito na lenha que você escolheu e cortou adequadamente, pois você
valoriza seu trabalho, quis dizer o autor. Da mesma forma os meninos sabiam que
aquele baita novelo de lã, de belo e cintilante colorido, daria uma boa pelada,
pois era levinho, fofo e podia dar-se o maior chutão, ainda que descalço, como
era o costume e o pé não se machucaria. Que tentação para a gurizada, mas...,
da mesma forma que aquela lenha queimava melhor, também o novelo de lã era o
melhor e mais valioso produto do mundo. Era produto de seu esforço!
Há
alguns anos visitamos a cidade de Prados, próximo a São João Del Rei e lá,
região de grande tradição na tecelagem artesanal, pude comprar uma roda de
fiar, uma dobradeira, um descaroçador de algodão e uma carda que é uma peça
retangular de uns 30 x15cm, semelhante à raquete de tênis de mesa. Na face
interna há uma escova de fino aço inoxidável, semelhante a uma escova de
cabelo. E ainda pude ver gravadas na sua madeira o nome da empresa inglesa que
a fabricava. Doce lembrança. Era tudo que eu queria para o meu museu
sentimental montado em minha chácara.
E
hoje é dia das Mães, mas o presenteado fui eu ao receber as fotos das colchas
que estão sob a guarda de minhas zelosas irmãs, na mesma fazenda onde foram
produzidas essas relíquias artesanais, algumas há mais de sessenta anos. Grande
lição do amor de mãe guardou ao lembrar-me das pequenas tarefas e
principalmente da vontade do menino de usar as “bolas” de lã para uns chutinhos
no gramado ao lado da casa:
“Ensina
a criança no Caminho em que deve andar, e mesmo quando for idoso não se
desviará dele!” - Provérbios 22:6.
Minha
mãe, dentre muitas atividades exercidas, também foi pastora de ovelhas, cuidava
delas, tosquiava-as na estação do verão, beneficiava a lã e mandava tecer as
colchas que nos aqueciam no inverno. Mas, hoje, mesmo depois de 52 anos, posso
dizer que ela foi pastora não apenas das ovelhas verdadeiras, mas, sobretudo
pastora de almas, moldando o caráter de seus filhos, com simples e eficazes
exemplos de vida e amor. As colchas que ajudamos a ela confeccionar ainda hoje
nos aquecem no inverno, mas, muito mais que isto, aquecem a nossa alma, sempre!
Feliz
Dia das Mães! A todas elas o meu abraço afetuoso de quem confia que o mundo
será melhor sob o manto do amor, carinho e atenção das mães a seus filhos.
Brasília,
10 de maio de 2015
Paulo
das Lavras
Conjunto de colchas de lã, com fios
preparados por minha mãe
e
ainda hoje conservadas na fazenda onde a lã foi beneficiada e
tingida artesanalmente
Idem, idem. Esta primeira colcha, de cima, foi
a destinada ao
menino seminarista, em 1958. Muitas
lágrimas o menino de
12 anos derramou nas noites solitárias
sob o aconchego deste
cobertor cuja lã sua mãe preparara cuidadosamente
e até
mesmo com a sua ajuda
A etiqueta de tecido com as iniciais do
menino interno no
Seminário de Itaúna. Ainda hoje conservada
na mesma fazenda
onde foi produzida e beneficiada a lã das
ovelhas de minha mãe
Minha mãe aos 32 anos, com o caçula, Anizio.
Ela faleceu prematuramente aos 49 anos
de idade
Cardas, os instrumentos para transformar
a lã bruta em plumas
que eram levadas à roda de fiar. Minha mãe era
craque nessa
operação e ninguém se igualava à sua agilidade
A famosa Roda de fiar que os meninos
gostavam de gira-la com
o pedal ou, melhor ainda, com a mão, a 1.000km/h... Longe dos
adultos, lógico...rsrs
A dobadeira (sem o “r” mesmo. Dobar,
significa enrolar o fio, enovelar).
Simples mecanismo girado com as mãos.
Colocavam-se as hastes
de madeira num dos buracos de cada cruzeta.
Enrolavam-se os fios
e
ao final tinham-se as “meadas” de comprimentos variáveis, de acordo
com
a distancia entre as hastes verticais da cruzeta. Excelente peça
para os meninos girar em altíssima
velocidade e de vez em quando
tomar um violento golpe das cruzetas, bem nas
costelas e sem direito a
choro, para não chamar a atenção dos
adultos...rsrs.
O descaroçador de algodão era o “cavalo”
dos meninos que
imprimiam maior ou menor velocidade nos
cilindros girados pela
manivela. Não raras vezes os dedos iam juntos
como se fossem
cana de açúcar na moenda..., também sem
direito a choro.
A
avó, Amanda de Abreu, de ascendência portuguesa e
que herdou o costume da tecelagem de colchas
de
algodão e de lã
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